Nem todos buscam notícias instantâneas: há espaço para o jornalismo aprofundado
Criação e manutenção de núcleos de investigação dentro de veículos de comunicação mostra que a tradição do RS em conteúdos especiais e de qualidade se mantém forte


Na contramão das informações rápidas e superficiais, volta a ganhar espaço entre o público o jornalismo de longo formato e investigativo. Nomes como os de Caco Barcellos e Tim Lopes, ou casos como o de Watergate, nos Estados Unidos, e Descendo aos Porões, durante a Ditadura Militar no Brasil, podem parecer um pouco distantes, mas o conteúdo aprofundado e apurado vem se mostrando cada vez mais atual.
Nas redações do Rio Grande do Sul, cresce a implementação de grupos de investigação - a exemplo do que já ocorre com o Grupo RBS e, mais recentemente, com a TV Record Guaíba. Além disso, outros tipos de materiais jornalísticos de longo formato são explorados, como o lançamento de reportagens televisivas aprofundadas, podcasts, séries e filmes de streaming inspirados em eventos reais, bem como obras literárias baseadas em acontecimentos da realidade brasileira.

Apesar de não se tratar de uma novidade, o jornalismo de longo formato ganha novos nomes e roupagens, também estimulados pela internet. Conceitos como os de "slow journalism", ou "jornalismo lento", em tradução literal, entram em discussão na academia. Em contraponto à corrida contra o tempo das manchetes tradicionais, debruçar-se, esmiuçar, detalhar e analisar são verbos que retornam em peso para os blocos - de papel ou digitais.
Mídia digital abre espaço para formatos
Para o jornalista e professor na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Marcelo Träsel, que presidiu a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) em 2020-2021, a questão não é tanto sobre o nível de minúcia dos produtos de Comunicação.
"Não tenho muita certeza de que o jornalismo investigativo hoje em dia seja mais aprofundado ou denso do que era 50 ou 100 anos atrás. Talvez haja mais variedade e volume de produção, como resultado do custo menor oferecido pela mídia digital para se produzir e veicular uma investigação jornalística", aponta.
O principal ponto, então, é a oportunidade de criar formatos, explorar informações interativas e reportagens hipertextuais (quando a escrita não precisa ser, necessariamente, linear e pode incluir links, imagens, sons, vídeos, entre outras linguagens).

RS tem histórico de produções reconhecidas
Pensando em um recorte de Rio Grande do Sul, Träsel afirma que o Jornalismo do Estado possui trabalhos reconhecidos e significativos na área investigativa. "Temos um histórico de levar troféus em premiações importantes no Brasil e no mundo. Mesmo na época da mídia de massa, quando esse tipo de trabalho era realizado sobretudo pelos veículos da RBS, havia iniciativas independentes", destaca.
Entre os exemplos, cita o despejo de dioxinas pela então Riocell no lago Guaíba, denunciado pelo jornal de bairro Oi Menino Deus; reportagens investigativas, sobretudo na área ambiental, do Jornal Já; e a produção de uma das primeiras reportagens com bases de dados do Brasil, realizada por Marcelo Soares, quando era estagiário de um jornal do bairro Auxiliadora.
Além disso, menciona veículos nativos digitais, como o Matinal e Sul 21; repórteres gaúchos que realizaram investigações importantes em veículos de outros estados, como Folha de São Paulo, Estadão e Globo; bem como o Grupo de Investigação (GDI) do Grupo RBS, que, segundo o professor, "segue produzindo reportagens de maneira consistente e com grande qualidade".
Quase uma década de GDI na RBS
Prestes a completar 10 anos, o GDI surgiu em meados de 2016. A jornalista Adriana Irion, que integra o grupo desde a sua criação, conta que a iniciativa foi inspirada no modelo consagrado pela equipe Spotlight, do jornal americano Boston Globe. "A Zero Hora sempre teve tradição em investigação e em grandes reportagens", afirma.
Adriana soma 33 anos de ZH, com uma experiência de 12 anos na editoria de Polícia. "Foi o que me deu o gosto pela investigação e um bom aprendizado sobre como fazer isso. Depois, trabalhando na editoria de Política, foi mais um momento para lidar com casos complexos de desvio de recursos públicos", explica.
De lá para cá, o GDI soma centenas de investigações veiculadas, a conquista de dezenas de prêmios estaduais e regionais, e a abertura de apurações oficiais por autoridades a partir das matérias. Outro resultado recente também foi a apresentação do livro 'GDI: Bastidores e Prática do Jornalismo Investigativo', em 2024. "O lançamento e aceitação mostram que estamos no caminho certo", sublinha.

Recém-criado núcleo da Record Guaíba também se destaca
Já na Record Guaíba, a experiência é mais recente. Jornalista e responsável pelo Núcleo Investigativo do veículo, Ricardo Azeredo lembra que o projeto começou no final de 2024. "A Record Guaíba entendeu que era preciso retomar o espaço para reportagens mais aprofundadas, com a finalização mais elaborada e uma edição m
ais requintada", relata.
Azeredo acredita que, com o ar do tempo, o telejornalismo gaúcho acabou deixando de dar atenção para esse tipo de produção. "Dedicar-se a programas especiais, com um material mais trabalhado, que permite ir mais a fundo, ter maior cuidado com a roteirização e a maneira de contar as histórias", complementa.
Ao lado do produtor Renato Gava, ele recebeu a tarefa de lançar a nova proposta. E a própria grade da Record Guaíba contribuiu para o projeto. "É o maior espaço de telejornalismo das emissoras locais, com quase oito horas diárias. Tem muito espaço. A emissora entendeu que temos que trabalhar essa tradição de jornalismo. É uma demanda da população, mas nós também temos estrutura e equipe qualificada para isso", arremata.
Questionamentos não impedem análise positiva dos resultados
Outros pontos importantes em relação ao jornalismo aprofundado e investigativo são trazidos pelos profissionais. O professor Marcelo Träsel pondera sobre o público que consome esse tipo de conteúdo. "Ou é uma autoridade, um ativista da sociedade civil, eventualmente um empresário e, claro, os próprios jornalistas. (...) São pessoas com formação universitária e estão dispostas a pagar por bom jornalismo. O grande problema é serem um grupo proporcionalmente pequeno na população brasileira", avalia.

Mas quando se trata de resultados, os retornos analisados vêm sendo positivos. Adriana Irion afirma, por exemplo, que o GDI está consolidado. "É uma marca reconhecida e procurada pelos leitores e pelas pessoas interessadas em denunciar irregularidades. Até autoridades nos trazem assuntos algumas vezes. É uma referência de reportagem investigativa. Vamos seguir fazendo esse jornalismo aprofundado", evidencia, acrescentando que, para ela, o efeito mais gratificante desse tipo de trabalho é ver um problema resolvido.
Da mesma forma, apesar de ter iniciado recentemente, o Núcleo Investigativo da Record Guaíba já vem colhendo frutos. Até o momento, foram veiculadas duas produções especiais - uma sobre a realidade das facções no Rio Grande do Sul e outra detalhando como as dragagens ao longo dos anos poderiam ter mitigado os danos da enchente de 2024. "Estamos muito animados com tudo o que está acontecendo. Às vezes, quando se lança um produto, é necessário um tempo de maturação. Porém, percebemos que nesse caso a resposta foi imediata. Vamos seguir nesse caminho e a emissora está decidida a investir", celebra.
Profissionais deixam dicas de conteúdos
Para quem deseja se aprofundar mais em produções realizadas nesse formato, Träsel, Adriana e Azeredo deixam algumas dicas. Para começar, o ex-presidente da Abraji indica a reportagem investigativa Snow Fall, do New York Times, o podcast seriado é O Caso Evandro, de Ivan Mizanzuk, a série Arrabalde, escrita por João Moreira Salles e publicada na revista Piauí, além do livro-reportagem O Nascimento de Joicy, de Fabiana Moraes. No Rio Grande do Sul, cita ainda os projetos do GDI, Matinal, Sul 21 e RadioWeb.
Adriana comenta que as matérias do GDI estão reunidas na página do Grupo de Investigação, em GZH. Além de recomendar as séries "O RS nas garras das facções" (5 episódios) e "Dragagens - porque dragar é preciso" (2 episódios), ambas disponíveis no Youtube, Azeredo ainda cita o livro A Arte da Reportagem - Volumes I e II, organizados por Igor F, e os filmes O Informante, Todos os Homens do Presidente, Spotlight - Segredos Revelados, The Post e Ao vivo de Bagdad.