Entrevista: Daniela Arbex é escritora de livros-reportagem sobre a realidade brasileira

Autora fala sobre o processo de produção de Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss, o jornalismo de qualidade e deixa dicas a estudantes

Mineira de nascimento, mas com um pé no Rio Grande do Sul. Assim é a jornalista Daniela Arbex, autora de livros-reportagem premiados, como Holocausto Brasileiro e Cova 312. Além deles, ainda faz parte de suas publicações "Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss". 

Durante dois anos, Daniela permaneceu na cidade de Santa Maria - RS, para conhecer personagens de uma tragédia que marca até hoje a história do Estado. E acabou, como ela mesmadiz, sendo atravessada por memórias e pela necessidade de justiça. Ela ainda fala sobre o jornalismo aprofundado e de qualidade, a humanidade da profissão e dá dicas a acadêmicos. Confira a entrevista da escritora ao Coletiva.net:

Em meio a um mundo de informações demasiadas e muitas fontes de distração, como é escrever livros jornalísticos, de conteúdo aprofundado, que estão engajando tanto o público?

O conteúdo de qualidade nunca foi tão necessário, tão relevante. Exatamente porque a gente está vivendo em um mundo de tanta superficialidade, de fake news. O conteúdo de qualidade faz toda a diferença. E eu falo sempre que a forma de contar também impacta o receptor. Então, a gente tem visto que esses livros-reportagens, que têm construído a memória coletiva do Brasil, têm feito a diferença no fazer lembrar. Exatamente porque as pessoas estão entendendo que esqueceram da história. Então, cada vez mais eu acredito que o jornalismo de qualidade se torna essencial.

Você considera essa uma tendência? Levando em consideração que também estão surgindo produções cinematográficas, há empresas de comunicação investindo em grupos de investigação, entre outros exemplos?

Acho que a palavra tendência talvez não seja a mais adequada aqui, porque a tendência é uma coisa da moda, que pode ar. Eu acho que é uma compreensão de que o jornalismo profissional é um bom produtor de conteúdo, e esse conteúdo relevante é fundamental para criar uma consciência, principalmente no espectador. Então, o que a gente está percebendo, e acho que o audiovisual acordou pra isso, é que o País quer ver as suas histórias sendo contadas. Ele não quer só a história do outro e aprender sobre a história do outro. A gente tem tanta história para contar. Também queremos nos ver nas telas. E a boa notícia é que isso também gera um mercado de trabalho muito amplo para o jornalista, que é essencialmente um produtor de conteúdo. A gente percebe que se o conteúdo for de qualidade, ele é relevante em qualquer plataforma.

Especificamente sobre o Rio Grande do Sul, como tem sido a recepção às tuas produções? É um público leitor de conteúdos de fôlego?

O Rio Grande do Sul é um "trem" que tem que ter um estudo de caso para a minha relação. É muito especial. Eu falo que hoje é a minha segunda casa. Assim, não só pela forma como o leitor gaúcho recebeu "Todo dia a mesma noite", mas a própria imprensa gaúcha, que foi incrível, teve uma maturidade, uma humildade de reconhecer e validar a importância desse livro. Foi muito bacana. E também o público gaúcho, os leitores gaúchos que me acolheram, que me seguem, acompanham o meu trabalho e que entendem que a gente precisa lembrar, por memória e por justiça. Então, assim, eu tenho uma relação muito, muito bacana, muito bonita com o Rio Grande do Sul, com Santa Maria, que vai muito para além do livro. Eu acho que ela ultraou o livro.

Sobre 'Todo dia a mesma noite - a história não contada da Boate Kiss', como foi o processo de investigação e produção do livro? Quanto tempo, se permaneceu em Santa Maria, como foi encontrar as fontes?

Então, 'Todo dia mesma noite' era o livro que inicialmente eu me recusei a fazer. Quando um colega de redação (na época, eu trabalhava na Tribuna de Minas) sugeriu que eu contasse essa história, eu disse para ele, equivocadamente, obviamente, que todo mundo já tinha contado essa história. Que eu não tinha nada que pudesse contribuir. Mas eu acabei ficando tocada com o apelo dele. Ele disse com muita convicção: "Poxa, Dani, acho que é você quem tem que contar, escrever esse livro". 
Enfim. Aí eu resolvi ir para Santa Maria e ouvir as famílias. E quando eu cheguei lá, fui entender que havia muitas histórias não contadas. Que o 27 de janeiro de 2013 não era só aquela madrugada trágica que não tinha acabado. Ela reverberava, como ainda reverbera, na vida das famílias. Eu acabei indo pro Sul e ficando dois anos lá. Então, foi muito desafiador pra mim, porque é muito distante de Minas Gerais e também porque no Rio Grande do Sul eu era uma estrangeira. Era uma jornalista de Minas para contar uma história que aconteceu no Rio Grande do Sul.

Mas tudo aconteceu de uma forma tão potente, assim. Essas pessoas acabaram entrando na minha vida. Para você ter ideia, três pais do Rio Grande do Sul vieram de surpresa na minha festa de 50 anos, no meu aniversário. Saíram do Rio Grande do Sul para vir para Minas Gerais só para me abraçar e participar desse momento de celebração da minha vida, quando eles perderam os seus. E a gente se fala todos os dias. A gente tem um grupo no WhatsApp, em que a gente se fala todos os dias e que eu sei o que que está acontecendo com eles. Eles conheceram a minha família, meu marido, meu filho. Então, me atravessaram de uma forma que foi muito além do que escrever um livro. Eu ganhei várias famílias.

Por fim, o que diria para estudantes e jornalistas que desejam trabalhar com jornalismo de longo formato? Quais as dicas e o perfil necessário para ingressar nesse universo?

Para trabalhar em jornalismo em profundidade, de longo formato, com apurações que demandam um tempo, acho que a primeira coisa que o estudante precisa pensar é que, primeiro, ele tem que gostar de gente. E, depois, ele tem que fazer um exercício muito profundo de escuta afetiva. Antes eu chamava de escuta qualificada e hoje eu entendo que essa escuta não pode ser só qualificada, ela tem que ser afetiva, porque ela tem que acolher, ela tem que ter empatia. E ela tem que ser para gente um exercício de se colocar no lugar do outro lugar. Um lugar que a gente não viveu, mas que a gente é capaz de sentir, que a gente é capaz oferecer, de mostrar pro outro, na verdade, que a gente tem interesse real pela história dele. Isso é um baita exercício de humanidade. E o jornalismo é, essencialmente, um exercício de humanidade.

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