Entre o público e o estatal: para onde vão esses veículos de Comunicação?

Futuro sobre estabilidade e adaptação ao mercado parece uma incógnita para pesquisadores

Um levantamento realizado pelo projeto Mais Pelo Jornalismo, do I'Max, mailing de imprensa que concentra aproximadamente 60 mil jornalistas do Brasil, revela que, de 2014 a 2024, houve um déficit de mais de 2,3 mil mídias no País. Isso significa que, do diferencial entre os veículos e portais que foram constantemente criados e encerrados ao longo desse período, o saldo é negativo em relação ao que então existia. 

Já o Atlas da Notícia, que compila dados a respeito do Jornalismo, aponta, em sua edição de 2023, uma redução de 8% nos desertos de notícia no Brasil - os lugares em que não há nenhum veículo de comunicação com informações locais operando. De acordo com a pesquisa, isso significa que 26,7 milhões de pessoas estão sem cobertura sobre o que acontece no seu entorno, abrangendo 2.712 municípios.

Neste ínterim, os veículos de Comunicação com dotação orçamentária pública podem representar uma alternativa diante da falta de abrangência jornalística que, não necessariamente, podem interessar à mídia comercial ou ao mainstream. A proposta esbarra no constante manejo e articulação que essas entidades têm realizado para a própria superação diante de um contexto de crise. 

Em audiência pública realizada no Senado Federal em 4 de novembro de 2024, representantes da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) pautaram dificuldades para o funcionamento, como a falta de profissionais, a extinção do conselho curador em 2016, durante o governo de Michel Temer (MDB), a ausência de realização recente de concursos públicos para a área e a necessidade de investimentos em tecnologia para a continuidade das operações. 

No Rio Grande do Sul, a principal e maior mola motriz da Comunicação Pública cerca-se na TVE RS e na rádio FM Cultura, que sofreram reflexos istrativos diante do fim de sua mantenedora, a Fundação Piratini, extinta pelo decreto N.54.089 durante a gestão de José Ivo Sartori (MDB). Esses cenários colocam em xeque a autonomia das estruturas públicas de funcionamento perante o mercado e como frente propulsora para um debate sobre a participação democrática na Comunicação. Qual é o futuro deste debate e como as emissoras vão sobreviver a partir disso? 

 

Ser estatal é ser público?

É preciso contextualizar as diferenças e possibilidades que cada tipo de veículo oferece. Isso representa imaginar as esferas públicas e governamentais como elementos separados e não necessariamente convergentes, uma vez que possuem linhas editoriais e estruturas legais e istrativas distintas.

A Constituição Federal de 1988, no Art. 223, versa sobre a outorga e renovação para os serviços de radiodifusão e indica a necessidade de uma complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal. Nessa perspectiva, abre-se a possibilidade de que cada um seja entendido em formatos separados e, cada qual, com suas singularidades. No entanto, a legislação não se aprofunda em definições mais específicas sobre o que seriam essas singularidades, o que demanda um aporte de investigação e de redefinições para que se chegue a uma malha conceitual que dê conta de delimitar os campos de atuação. 

A Lei N. 11.652/2008, que autorizou a criação da Empresa Brasil de Comunicação, igualmente cita esses princípios para observação, em alinhamento com a Carta Magna, mas também não entra nos meandros das situações que caracterizariam cada uma delas, salvo pelo Art. 3º, que informa sobre os objetivos de uma radiodifusão pública. Por isso, entender o futuro dos veículos de Comunicação advindos do Estado demanda, antes de mais nada, compreendê-los em suas propostas e istrações.

Para Maria Helena Weber, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), falar em estruturas estatais significa relacioná-las ao atendimento à estrutura governamental, servindo como uma promotora de ações do governo e de alinhamento com a gestão. Nesse caso, o debate público não é, necessariamente, privilegiado, funcionando como uma verticalização das informações que podem ser de interesse da istração pública divulgar. 

"Seus gestores investem na simplificação, e a tendência é que sirvam à propaganda das políticas governamentais do momento. Essa característica reduz a capacidade das emissoras de dar visibilidade a projetos e políticas públicas e ao debate iminente às democracias", afirma. As emissoras estatais, por isso, ocupam uma posição de reforçar determinadas posições políticas, com casos em que chegam a servir como assessoria de imprensa oficial do governo.

Já as emissoras públicas contam com um aporte que possibilita a ampliação do debate por, na sua istração e programação, contar com participação democrática da sociedade, ligando-se à ideia de cidadania. De fato, nos objetivos da radiodifusão pública dados pelo Art. 3º da Lei N. 11.652/2008 é mencionado o desenvolvimento da "consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania" em seu inciso II. 

No seguinte, é explicitamente citado o caráter que atribui importância a esse tipo de emissora para a manutenção de um estado civil democrático: "Fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação". O antropólogo colombiano Jesús Martín-Barbero chega a citar, no texto 'Televisão pública, televisão cultural: entre a renovação e a invenção', que "a televisão pública acaba sendo, hoje, um decisivo lugar de inscrição de novas cidadanias, onde a emancipação social e cultural adquire uma face contemporânea".

O papel da radiodifusão pública, assim, vai além do proposto pela estatal - funcionando como uma porta-voz do que acontece nas esferas istrativas - ao amplificar os debates e oferecer visibilidade à diversidade cultural e social. O Jornalismo já tem, por si só, esclarecer o cidadão e apresentar a pluralidade da sociedade como uma de suas 12 finalidades apontadas pela pesquisadora Gisele Reginato na obra 'As finalidades do Jornalismo'. No sentido iluminista do termo, como a autora menciona, isso significa que ele busca apresentar aos leitores que o mundo é mais complexo do que se imagina, valendo-se de inúmeras vozes e opiniões para pintar o quadro da sociedade. No caso das emissoras públicas, o papel é ainda mais singular, pois não se trata apenas de Jornalismo, e sim, de uma programação que contém Entretenimento e Educação.

Além disso, as emissoras públicas apresentam possibilidades de divulgação para além das emissoras comerciais e que possam ultraar as limitações que o mercado e os patrocinadores impõem. O deputado federal e ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República durante o terceiro governo Lula, Paulo Pimenta (PT), afirma que as empresas públicas cumprem um papel, inclusive, diante do contexto de circulação de desinformações: "Elas garantem que temas de interesse nacional sejam abordados de forma plural e educativa, sem a lógica do mercado privado". 

Neste sentido, Martín-Barbero reforça, com os grifos de sua autoria: "Assim como na esfera do mercado, a regulamentação estatal se justifica pelo inegável interesse coletivo, presente em toda atividade de comunicação de massa, a existência de meios públicos justifica-se pela necessidade de possibilitar alternativas de comunicação que deem entrada a todas aquelas exigências culturais que não cabem nos parâmetros do mercado, sejam elas provenientes das maiorias ou das minorias".

Há uma crise no modelo?

Luiz Artur Ferraretto, também professor da UFRGS e ex-presidente do Conselho Deliberativo da extinta Fundação Piratini, defende que "emissoras, para serem consideradas públicas, precisam ter, obrigatoriamente, conselhos deliberativos com representatividade da sociedade". O pesquisador, porém, pondera: "É raríssimo isso no Brasil. Isso já diminui o impacto delas". No caso da TVE e da FM Cultura, após a dissolução do órgão, ambas foram subordinadas ao Departamento de Radiodifusão e Audiovisual da Secretaria Estadual de Comunicação (Secom), ficando diretamente ligadas à istração estadual.

Para Ferraretto, há uma falta de empenho, por parte dos governos, em fazer essas entidades continuarem seus trabalhos. O professor cita, na sequência da extinção da Fundação Piratini, um processo de desconstrução e desmonte das emissoras, que contavam com a participação de representantes da sociedade civil. "Parece que há uma incompreensão, por parte dos governos, a respeito do real papel dessas emissoras. Muitas vezes, o papel que é atribuído a elas é de relações públicas, ou de assessoria de imprensa", comenta.

A superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Vânia Lain, destaca o protagonismo das emissoras públicas quando se trata de transparência e de compromisso com a sociedade ao promover diversidade de pautas. "Emissoras públicas, como a TV Assembleia, devem ser analisadas a partir de uma visão sobre a importância da informação pública, da pluralidade midiática e da adaptação tecnológica." Ela destaca que esses canais funcionam como pontes diretas entre os cidadãos e, nesse caso, o poder Legislativo, que representa a integralidade da população do estado. "As emissoras públicas e legislativas reverberam uma realidade muito heterogênea, nem sempre acolhida como pauta pelo ponto de vista do jornalismo de hard news; elas ampliam o o a vozes e temas que dificilmente teriam espaço em canais comerciais. Elas contribuem para a diversidade de narrativas, de pensamento e participação cidadã", complementa.

A TV Câmara, vinculada à Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre, também vem com uma perspectiva de ampliar temas que são de interesse público. Dividindo com a TV Assembleia o canal 16 da NET, a emissora apresenta uma revista eletrônica, entrevista personalidades da cena local e transmite as sessões do Legislativo municipal, incluindo diversas reprises ao longo da semana.

A TVE, em operação desde 1974, veicula programas que possuem uma longa relação com o povo gaúcho, como Radar e Pandorga. Já a FM Cultura, no ar desde 1989, tem em sua grade, na mesma linha, Conversa de Botequim e Café Cultura. Ambas as emissoras funcionam como fomentadoras de um conteúdo produzido de uma forma plural e da cultura gaúcha, apresentando quadros locais e que reforçam a divulgação dessa agenda típica do Estado. 

A longa relação com o povo do RS também é marcada por instabilidades istrativas e quanto à própria existência das emissoras, cujo histórico é marcado por uma trajetória de lutas para a continuidade de seu caráter público. De acordo com o Relatório de Realizações da gestão 2011-2024 da Fundação Piratini, de 2003 a 2010, foram investidos apenas R$ 515 mil reais - no ano de 2008, o valor chegou a ser de somente R$ 4,7 mil reais. 

O atual diretor do Departamento de Radiodifusão e Audiovisual, Caio Klein, diz que tem buscado parcerias para a manutenção das atividades das emissoras, citando uma reestruturação na própria Secom, além de uma preocupação com a continuidade, no longo prazo, do oferecimento dos serviços. "Quando nós assumimos, já tinha esse cenário posto. A gente reorganizou as forças de trabalho e aumentamos, significativamente, a produção da programação local. O fato de estarmos ligados diretamente a uma secretaria não é, por si só, uma questão ruim", frisa. O gestor demonstra expectativa com a implementação da TV 3.0, a nova geração da televisão digital brasileira, que deverá unir a tradicional transmissão pelo ar com a broadband, que é a transmissão pela internet.

E o futuro?

Weber considera "complexo" o futuro das emissoras governamentais de comunicação, ressaltando a importância dessas instituições para a contribuição no debate social e para a promoção da verdade. Segundo ela, se, por um lado, o rádio é financeiramente mais fácil de ser mantido, por outro, é grande o aporte de recursos necessários para a permanência da televisão, especialmente em tempos de hibridação e de integração com novas plataformas e formatos. 

Nesta linha, afirma que é necessário definir princípios para o correto manejo dos investimentos, recursos e ferramentas, também pela distinção que esses veículos ocupam em relação aos outros tipos de meios de comunicação. "Essa perspectiva - associada ao ambiente digital -, as coloca em lugar privilegiado em relação às demais mídias porque as torna singulares e, assim, atraem públicos específicos", explica.

O apontamento de Weber alinha-se com o crescimento dos ambientes digitais e a necessidade de um posicionamento cada vez mais intenso nos ambientes de redes. Esta associação com o ambiente digital, assim como também já acontece com os demais modelos de meios de comunicação, deverá estar mais intimamente em pauta. Klein reconhece a necessidade de uma maior inserção da TVE e da FM Cultura nas redes sociais como propulsoras de divulgação e como alguns dos principais canais de divulgação de conteúdo. 

"Nós precisamos, além do canal tradicional, ter, também, uma inserção nessas mídias novas. A gente entende que o consumo de mídia está muito nesses canais, e estamos com o desafio de como conseguimos transformar nossos programas para que o público nos perceba em outras formas de distribuição".

Lain, na mesma linha, considera essencial a incursão nos meios digitais e uma adaptação ao sistema de streaming e às redes, sendo uma forma de dar visibilidade para um trabalho cujo objetivo é a cidadania. "A produção de conteúdo multiplataforma é fundamental para alcançar novos públicos, especialmente os mais jovens. É um desafio constante se reinventar e se comunicar com a sociedade", diz. Ela afirma que o futuro desses veículos está ligado a esta capacidade de reinvenção, realizando adaptações tecnológicas e proporcionando espaços com participação pública e de fortalecimento da relação com o público, que considera ser o aspecto social mais relevante.

As particularidades das emissoras públicas, assim, fundem-se com a crescente e necessidade de presença digital, umas vez que diferentes conteúdos são consumidos somente nas redes, tornando, estas, propulsoras de conteúdo adaptados para a realidade da plataforma. "O desafio é juntar o tradicional com o novo de uma forma que faça sentido para a população gaúcha", diz Klein. Lain explica que a convergência nas plataformas também é um dos balizadores para a compreensão do futuro das emissoras públicas, e que estas também funcionam como importantes ferramentas no combate à desinformação política e às notícias falsas. "Acredito que [o futuro tecnológico] e pela criação de modelos híbridos, com parcerias que preservem o interesse público como prioridade. Os veículos públicos bem-sucedidos, no futuro, serão aqueles que conseguirem aliar inovação tecnológica com compromisso ético, diversidade e transparência", pondera.

Pimenta declara que, enquanto esteve à frente da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, uma dos desafios foi estabelecer uma comunicação institucional com clareza, num contexto de polarização política, e de modernização das da forma de relacionamento governamental com os diferentes públicos. Ao mesmo tempo, também frisa a necessidade de adaptação às novas mídias e aos seus formatos de interação com estes públicos, itindo que os formatos de consumo de mídia possuem novas dinâmicas. 

"O futuro dessas emissoras a pela digitalização, pela integração com novas plataformas e pelo fortalecimento de uma comunicação cada vez mais interativa e participativa", complementa. O ex-ministro, que também é jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), enfatiza que deve haver um compromisso com a informação de interesse público e com a independência editorial para que essas mídias sigam cumprindo um "papel essencial na democracia brasileira".

A preocupação com as verbas são intrínsecas quanto ao futuro e à própria istração das entidades, estando o volume de investimentos e de qualidade de programação correlacionados com a capacidade de sustentar as atividades das emissoras. Ferraretto versa sobre as possibilidades de futuro, que podem ir do mundo desejado ao mundo prático. 

"Sem investimento, a tendência é não ir além do que se tem hoje e, até, piorar essa situação. Sem investimento, não se faz nada. Sem dinheiro, não se faz nada. E é preciso ser entendido pelo poder público que esses veículos precisam ser pensados, verdadeiramente, como um projeto do Estado para o futuro da Comunicação, e não um projeto do partido [político]", comenta.

O futuro das estações públicas de comunicação a por uma reestruturação de seus conceitos diante das mídias digitais e da necessidade de reinvenção para a formulação de conteúdos que possam ser consumidos tanto pelas pessoas mais velhas quanto pelos jovens, hiperconectados e com novas linguagens que am a fazer parte do cotidiano social. 

Como frutos de políticas de democratização, essas estruturas, para sua consolidação pública, especialmente no contexto de difusão de redes, precisarão, cada vez mais, reforçar a sua importância como meios de comunicação com capacidade de participação popular e, assim, de fortalecimento da ideia de meios de comunicação que têm a cidadania no seu âmago. Investimentos em tecnologia e uma compreensão melhor estruturada das redes são fundamentais para que esses veículos não só se comuniquem com seus públicos, como permaneçam existindo e prestando serviços à sociedade brasileira.

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