Conteúdo no piloto automático: a IA assume o volante?

Com a ascensão de ferramentas cada vez mais poderosas, portais enfrentam uma árdua luta contra a queda de tráfego e buscam estratégias para se adaptar ao novo cenário

 

 

A Inteligência Artificial (IA) não é mais promessa do futuro - ela está no nosso cotidiano, moldando hábitos, automatizando respostas e mudando a forma como buscamos (e recebemos) informações. Ferramentas como Google Gemini e ChatGPT não apenas apontam caminhos, mas entregam respostas prontas, bem ali na primeira tela. O clique que antes levava o leitor ao portal agora pode simplesmente... não acontecer.

Para quem vive de audiência, este vazio pesa. Menos visitas significam menos anúncios, menos s, menos sustento para o Jornalismo Digital como o conhecemos - cuja receita depende, em grande escala, da publicidade. Se, por um lado, a notícia teve seu trajeto encurtado até o usuário, por outro, para o jornalista, que dedica tempo e esforço à criação da matéria, ficou mais estreito.

Jornalismo em busca de atalhos

Hoje, existem diversas tecnologias carregadas por IA que são projetadas visando simplificar e potencializar a produção de conteúdos. Plataformas como o Notta.ai, Fireflies.ai, Sonix.ai e o Microsoft Copilot vêm sendo incorporadas ao dia a dia de profissionais de imprensa. Essas ferramentas atuam na construção de resumos de entrevistas, bem como na produção de transcrições instantâneas de áudios para textos e na organização de anotações de reuniões on-line em tempo real.

Embora, por um lado, ampliem a produtividade e inspirem ideias, especialmente em momentos de bloqueio criativo, por outro, também possuem aspectos não tão agregadores. Giovanna Alvarenga, sócia-diretora da agência Cuentos y Circo, sediada na Capital Gaúcha, define essas ferramentas como "uma faca de dois gumes". "Meu maior receio é que, a partir dessa ideia que está surgindo - de que as inteligências artificiais existem para proporcionar mais agilidade e produtividade ao criador -, acabemos tendo tudo padronizado, com o mesmo estilo", pontua.

Impactos na audiência e monetização

 

Para portais, o uso de ferramentas que entregam resumos prontos pode impactar diretamente a audiência. Esses resumos eliminam a necessidade de cliques em artigos completos, diminuindo o tráfego nos sites e, consequentemente, afetando a monetização baseada em anúncios.

Em conversa com a reportagem, a professora da Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos), instituição vinculada à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Karen Sica aponta que "criar conteúdos exclusivos e multimídias, além de fóruns de interação que permitem a troca entre usuários, pode ser uma saída para atrair o público de volta aos sites e evitar perdas".

No universo dos vídeos, como em canais no YouTube, tecnologias de resumo automatizado têm oferecido facilidade ao entregar trechos editados para o público. Isso, porém, reduz o tempo de visualização, um fator crucial para a monetização.

Neste aspecto, Karen ressalta a importância da criatividade para engajar o público. "Transformar resumos em teasers instigantes pode atrair o espectador ao conteúdo completo, ajudando a equilibrar o impacto dessas ferramentas", complementa.

Em podcasts, serviços como Adobe Podcast e Anchor simplificam a edição e o compartilhamento de episódios. Embora úteis, essas ferramentas podem impactar negativamente a audiência ao oferecer versões condensadas que afastam os ouvintes do formato completo.

Quando o clique desaparece

Diante de um cenário em que as respostas surgem antes mesmo do clique, os resumos gerados por inteligência artificial em mecanismos de busca, como o Google, levantam questões urgentes sobre a sustentabilidade do Jornalismo Digital. Ferramentas como o Google Gemini, o ChatGPT e, mais recentemente, o recurso 'Instant Summary' da Samsung - capaz de condensar vídeos inteiros do YouTube - entregam ao usuário versões sintetizadas do conteúdo, muitas vezes eliminando a necessidade de ar a fonte original.

Sendo assim, práticas de SEO sofrem mudanças significativas com essa popularização. Resumos automáticos podem reduzir o tráfego orgânico ao eliminar a necessidade de cliques, prejudicando a rentabilidade. Para mitigar isso, portais devem criar materiais exclusivos que incentivem o o completo e engajem a audiência em múltiplas plataformas.

Neste assunto, Karen Sica alerta que esta nova dinâmica pode reduzir significativamente o alcance de portais. "As pessoas encontram as informações que precisam diretamente ali na página de buscas, sem obrigatoriamente clicar nos links externos", destaca.

Com isso, redações se veem obrigadas a repensar suas estratégias de produção e divulgação. Karen chama atenção para apostar em experiências diferenciadas, como a construção de comunidades e fóruns virtuais, além de lançar materiais exclusivos mais aprofundados, que vão além do básico - pode ser uma alternativa para manter a audiência engajada. "As inteligências artificiais, querendo ou não, trazem respostas rápidas, mas ainda têm um pouco de limitação para oferecer algumas análises mais interpretativas ou, até mesmo, insights mais exclusivos", lembra.

IA como aliada: o que pode nascer dessa relação?

Apesar dos dilemas, a inteligência artificial também abre caminhos promissores para o Jornalismo. Em ambientes com escassez de tempo e funcionários, como em redações menores, ferramentas carregadas por inteligência artificial têm sido essenciais para manter o fluxo de publicações. Desde a automação de newsletters até bots que monitoram dados em tempo real, a IA se torna uma fonte de apoio importante.

O fundador e CEO da startup gaúcha Alright, criada com a proposta de fortalecer veículos de Comunicação locais e especializados, enfatiza o papel da inteligência artificial como fonte de apoio e agilidade para essas empresas. Segundo ele, "quando bem utilizada, a IA permite que as equipes jornalísticas se concentrem no que realmente importa: investigar, apurar e contar boas histórias". A automatização de tarefas demoradas e recorrentes, como a transcrição de entrevistas ou o agendamento de posts em redes sociais, libera tempo e energia para o trabalho analítico e criativo, contribuindo para uma cobertura mais qualificada.

A IA, portanto, não surge apenas como um desafio à profissão, mas também como uma aliada estratégica - especialmente quando integrada com responsabilidade. Quando utilizada para ampliar capacidades humanas e não para substituí-las, a tecnologia pode ajudar a resgatar o foco do Jornalismo em sua essência: informar com profundidade, contexto e relevância.

Amanhã ainda está sendo escrito

 

O jornalismo vive um daqueles momentos decisivos. Há quem veja nesse caminho uma ameaça. Outros, uma chance de reinventar seus pensamentos. Talvez sejam os dois. O fato é que não dá para ignorar: a forma como se consome informação mudou, e está mudando ainda.

Karen Sica reforça que, para que esse futuro seja mais justo e equilibrado, é imprescindível a criação de regulamentações que delimitem o uso da inteligência artificial no ambiente jornalístico. "Estabelecer diretrizes claras é essencial para equilibrar o uso deste tipo de ferramentas e assegurar que jornalistas, produtores e autores sejam devidamente reconhecidos e remunerados", afirma.

Ela acredita que a IA, quando usada com responsabilidade, podem ser parceiras no fortalecimento do Jornalismo, mas que isso a por um esforço conjunto entre governo, plataformas e veículos de imprensa. "Precisamos priorizar uma regulamentação que minimize os impactos negativos e valorize o trabalho humano, garantindo sustentabilidade para o setor", destaca.

A pergunta que fica não é se o Jornalismo vai sobreviver à IA. É como ele vai atravessá-la. As fontes afirmaram, com unanimidade, que é com coragem, criatividade e, sobretudo, com compromisso com a verdade. Porque, mesmo que os caminhos mudem, o destino continua o mesmo: informar com responsabilidade, provocar reflexão e trazer informações de qualidade para a população.

Comments