Jesus Iglesias: Cidadão brasileiro
Ele é um agitador cultural no meio publicitário, e se destacou por ter criado a primeira – e polêmica – house-agency no Estado
Ao nascer em 1945 na cidade do Porto, em Portugal, onde moravam os pais espanhóis, foi batizado de Jesus Baltasar Gallego Iglesias. Registrado no Consulado da Espanha, veio para o Brasil aos dois anos de idade e desfruta hoje de dupla nacionalidade. "O sangue é espanhol, mas o coração, com certeza, é brasileiro", garante Jesus Iglesias, nome pelo qual é conhecido por todos. Da infância tem muitas lembranças das peripécias que aprontava ainda garoto. O futebol na calçada ou no areião, os eios de bonde e o carnaval de bairro, que acontecia na avenida Presidente Roosevelt e na Dr. Timóteo, ainda enriquecem sua memória.
Aos 10 anos já ajudava o pai em seu negócio, arte em vidro, e a política também entrou cedo em sua vida. Estudou no Colégio Rosário, mas não pôde concluir o ginásio na instituição. Tinha forte atração pela política estudantil, tanto que fazia parte do grêmio, além de estar envolvido com a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). "No último ano que estudei no Rosário, estava em uma turma da qual metade dos alunos fazia parte da diretoria da Uges (a União Gaúcha dos Estudantes Secundários). Os irmãos maristas não agüentaram e nos comunicaram que não havia mais matrícula para nós. Fui terminar meu ginásio no Rui Barbosa", recorda com entusiasmo.
Na época em que estudava no Rosário surgiu o desejo de ingressar na comunicação social quando ficou responsável pelo jornal. E aí, mesmo sem ter nenhuma experiência, foi à redação da Última Hora para pedir informações sobre como fazer um jornalzinho. Recebido por Mário de Almeida e Aníbal Bendati, Jesus sentiu uma forte iração pela profissão. "Eles foram maravilhosos. Isso influenciou muito na minha decisão", recorda.
Aos 21 anos ingressou na faculdade de Comunicação da Ufrgs, no tempo em que formava ao mesmo tempo para as áreas de jornalismo, relações públicas e publicidade e propaganda. Como sempre, engajado em movimentos estudantis ou a elaborar o Jornal Universitário do DCE e a participar do Grupo de Ação Popular (GAP), de esquerda - mas precisava de um emprego. Jesus prestou concurso e ou em primeiro lugar para assistente istrativo do DMAE. O envolvimento com a comunicação fez com que fosse remanejado para a função de assistente de relações públicas do diretor-geral. Na batalha por espaços na mídia, recorda ter conhecido bons amigos, como os jornalistas Alberto André e Walter Galvani. Em paralelo com o emprego, entrou para a ADVB como secretário-executivo, tornou-se diretor de comunicação e, por último, vice-presidente. "Nos sete anos que atuei lá, vi a entidade crescer e tornar-se nacional", conta.
Novos rumos
Ações junto a agências para o DMAE fizeram com que conhecesse muitas pessoas também na área de propaganda. Conheceu e também ficou conhecido. Resultado: começaram a aparecer convites para atuar na área, e ele foi. Jesus ou pela Standard Propaganda, Norton Publicidade e Símbolo Propaganda. Foi quando recebeu o convite da Ampla - Assessoria Mercadológica e Propaganda para ser diretor-geral. "Formei a empresa. Inicialmente, atendíamos apenas a Rede de Supermercados Real, depois adquirimos outros clientes", explica, ao falar daquela que foi uma empresa polêmica por ter sido, a rigor, a primeira house-agency no Rio Grande do Sul.
Considerada por ele uma de suas melhores fases profissionais, foi dentro da empresa que viveu grandes realizações. "Época esplendorosa. Tínhamos grandes criadores como Beto Callage, Beto Soares e Flávio Teixeira. A agência foi superpremiada, pois possuía um bom grupo de criação e eu era um bom de criadores, esta é a verdade. Eu dava liberdade e um bom briefing para eles".
Dentre as campanhas premiadas está uma especial para Jesus, feita em 1980. Assinada por Beto Callage e com o mote "Liberdade para as agitações", a peça mostrava um grupo de jovens em uma garagem - muitos pés em movimento - que pegavam latas de tinha e saíam para pixar. Na época, a gíria dos adolescentes era "agitação". "O que fizemos foi uma simbiose da palavra que possuía um duplo sentido social naqueles dias", conta. O comercial, que era para uma famosa marca de tênis, rendeu para a agência o prêmio nacional "Profissionais do ano da Rede Globo", além de uma repreensão do Código Nacional de Auto-Regulamentação, "devido a uma denúncia de um reacionário fanático de extrema direita, que nos acusava de insuflar uma rebelião de boys em São Paulo". A equipe foi obrigada a mudar uma cena. A ironia é que Jesus fora um dos autores do código de auto-regulamentação. Esta não foi a última vez que ou por uma saia-justa.
Também na Ampla foi procurado pela Polícia Federal que "recomendou" que não autorizasse novos anúncios no Coojornal porque "era um jornal de esquerda". Jesus procurou seu principal cliente e expôs a situação. Recebeu apoio e carta branca para tomar a decisão que quisesse. "Junto com o amigo e jornalista Alberto André fui na PF para pedir explicações e um documento que comprovasse isso. Eles não podiam dar nada, porque não tinham nada, era apenas uma pressão. Não me esqueço daquele dia, pois eu - que sempre fui um jornalista frustrado - pude, como publicitário, representando a propaganda, ajudar meus amigos jornalistas e defender uma questão ideológica, libertária".
A propaganda de ontem e hoje
Para Jesus, sua geração enriqueceu a propaganda em termos de criação, pois deu mais conteúdo com o marketing. "No período de repressão tudo se desenvolvia mais, o cartunismo, o jornalismo, havia caldo cultural. A criação ou a ter o objetivo de comercialização e não só a parte poética, a frase de efeito. Existia, sim, a frase de efeito, mas com uma finalidade e a identificação do público-alvo", destaca. Hoje, considera a publicidade menos criativa e mais pragmática por causa da força da mídia. "A publicidade se abastece da sociedade, é uma questão cultural. A globalização tem uma influência imensa nisso, pois se tem menos clientes do que há dez anos. Existem poucos varejos e os grandes shoppings centers concentram a publicidade das empresas que abrigam. Isso causa um enxugamento nas agências. É uma fase difícil, de mudanças fortíssimas, e ai de quem não se adaptar a isso".
Jesus sempre esteve à frente de entidades ligadas à comunicação. Fez parte da Associação Brasileira de Relações Públicas no RS, onde foi um dos organizadores do 1º Encontro de RP, foi presidente - por três vezes - da Associação Rio Grandense de Propaganda, presidente do Conselho Nacional das Associações de Propaganda, fez parte da mesa do segundo e último Congresso Brasileiro de Propaganda e recriou, com Adão Juvenal de Souza, a Associação Brasileira das Agências de Publicidade - ABAP/RS. Além disso, ajudou a criar a revista Anúncio e participou da criação do Curso de Especialização em Comercialização da ADVB, PUC, FGV, OEA, onde foi - num primeiro momento - aluno e depois professor. "Já havia dado, durante muito tempo, uma importante contribuição na área política da propaganda e decidi me dedicar a outras coisas", conta.
O bairrista
Completamente apaixonado pela capital gaúcha, em um bate-papo com o amigo José Antônio Pinheiro Machado, decidiu criar a Sociedade dos Amigos de Porto Alegre, a SAPA, "que era uma verdadeira DENG, isto é, uma Desorganização Não Governamental", em 1985. Jesus lembra que a reunião de fundação foi marcada para realizar-se no Chalé da Praça XV.
"Pensei que não ia ninguém. Fiquei surpreso quando vi a imprensa, o prefeito, alguns deputados, meu amigo Luis Fernando Veríssimo e muitas pessoas. Apareceram até mesmo as mulatas do Sargenteli, que estavam na cidade". A decisão de deixar a política de lado e se engajar em "outras coisas" reaproximou-o de um amor antigo, a navegação. Jesus ingressou em um "grupo de jovens grisalhos navegadores".
Na mesma época, foi procurado por um antigo professor do Rosário que queria orientações sobre como organizar procissões fluviais na cidade. "Nos juntamos com ele e nasceu em 1994 a associação Viva Guaíba, um braço da SAPA. Começamos a realizar a procissão fluvial de Nossa Senhora da Conceição, a de Nossa Senhora dos Navegantes e, depois, a de Nossa Senhora Aparecida", afirma o publicitário que, no ano ado, recebeu medalha e título de "Amigo da Marinha". A música - que sempre esteve nos planos de Jesus - também ganhou espaço em sua vida e nos palcos. Ele dirigiu o musical "Lupicinio - sobrenome Paixão", eleito em 1982 pela crônica especializada como um dos melhores espetáculos daquele ano. Além disso, foi diretor e apresentador do "Itaí - a nossa música", um programa sobre música urbana do Rio Grande do Sul, transmitido pela Rádio Itaí.
Eterno amigo
Ainda envolvido com a música, mas com novos projetos, recebeu o aval da Polygram para co-produzir o álbum Antologia Poética de Mário Quintana, que idealizou. A iração pelo poeta já era grande, mas nunca imaginou que ele seria o responsável por um momento inesquecível em sua vida. "Estavam gravando no estúdio quando Mário perguntou se eu estava. Disse que sim e questionei se precisava de alguma coisa. Me respondeu que não sabia recitar poemas para um microfone e, gentilmente, pediu que ficasse na frente dele para que os recitasse para mim. Foi maravilhoso, e sempre que me recordo disso fico com um nó na garganta", revela emocionado.
Casado três vezes, hoje está solteiríssimo. Da última relação nasceu o filho Vinícius, hoje com 15 anos. Na agenda de pai e filho constavam, até dois anos atrás, shows de rock no Opinião. "Ele está na fase da adolescência, quando os filhos se afastam dos pais, mas, mesmo assim, a ligação continua fortíssima, com menos carga horária, mas fortíssima". O orgulho do pai - que ama a música, mas deixa bem claro que não toca nada, canta menos ainda - foi a decisão do filho de estudar guitarra e teclado. "Isso me deixa muito feliz. Quem sabe ele não segue por aí".
O Incansável
Apelidado por alguns amigos de incansável, Jesus não tem medo de arriscar. Depois de mais de duas décadas na Agência Um Propaganda, há pouco mais de um mês decidiu mudar tudo. Foi para a Mix Promoção & Comunicação e começou do zero. "Com 58 anos nas costas determinei que ia mudar minha rotina e mudei. A vida é assim, uma troca de energias", ensina Jesus. Apesar do ritmo que segue, o antigo boêmio, hoje muito mais calmo, diz que deixa a badalação de lado para apreciar um bom bate-papo, regado a boa música, no bar Fellini, ou então para rever filmes de seus diretores preferidos, Kurosawa, Frederico Fellini e Jorge Furtado.
A música, velha companheira, também não fica de lado: para ouvir e cantar (no chuveiro), Elis Regina e Milton Nascimento. Jesus se considera um epicurista, seguidor da doutrina do filósofo grego Epicuro, que tem como ponto básico que o bem é o prazer, e o essencial para a felicidade é a condição íntima. "Certa vez, fui convidado por amigos para jantar e, antecipadamente, me informaram que o prato escolhido pela maioria não era do meu agrado, mas faziam questão da minha presença. Respondi com uma frase de Epicuro que diz que "o importante não é o que vamos comer, mas com quem vamos comer", ou seja, o importante é a comunhão. A amizade é a maior riqueza que se pode ter e isso é muito forte para mim".
Nota da Redação: Jesus Iglesias faleceu em 16/02/2004.
