Soco no estômago 1w45s

Uma foto no jornal, em 3×4, um nome conhecido. A violência, quando bate nos afetos e nas lembranças da gente, dói mais. Luiz Boeira … phq

19/01/2007 00:00

Uma foto no jornal, em 3×4, um nome conhecido. A violência, quando bate nos afetos e nas lembranças da gente, dói mais. Luiz Boeira faz parte dos quadros da minha infância, na Vila do IAPI, onde eu ava as tardes debruçada no balcão da sapataria do meu pai, ajudando a receber os sapatos dos ?freguês?, colando papeletas com grude, na palmilha, com nome dos que formavam nossa clientela. Luiz, ou Luizinho, como a gente chamava, era um menino gordinho e quieto, diferente do irmão, Paulinho, um bagunceiro risonho. Os dois eram ?freguês? habituais da sapataria. Como sempre, a vida leva cada um para um lado. Perdemos contato. Hoje, abro a Zero Hora e vejo que a manchete da morte de um arquiteto numa obra da Bordini com a Dona Laura dizia respeito ao Luizinho. Um tiro no rosto, outro no crânio. Detalhes de uma atitude estranha de sacar dinheiro, entregar ao sócio, se despedir, se emocionar. Na manhã seguinte ao que seria um dia rotineiro de trabalho, um corpo encontrado num banheiro. Um assassinato a mais neste dia-a-dia maldito de absurda violência. Seria um morto a mais, como deve ser para milhões de pessoas que não têm uma memória a ver com a vítima. Para mim, foi um soco no estômago. 233j51

Não consigo deixar de relacionar um crime cometido em outro bairro com a situação atual de uma vila residencial que teve, um dia, dignidade e hoje é uma favela urbana, disfarçada por fachadas de prédios e casas sólidos, mas tomada por construções irregulares, apinhadas de gente.

O IAPI em que eu cresci, estudei, brinquei, não existe mais. Havia cercas-vivas que me forneciam material para minhas imaginárias recepções, em cozinhas plantadas na pedra de grês, inhas de alumínio, fogão de plástico, poltronas de madeira revestidas de papel, bonecas recortadas de revistas. Havia projeção de filmes da Atlântida, na parede dos edifícios, em plena rua, calçadas e banquinhos guardando lugar desde cedo, crianças de banho tomado e cheirando a talco, a bordo de pijamas impecáveis num estranho cinema democrático na raiz. Havia inocência e segurança.

Pobreza saudável, na vida de operários que saíam cedo para o trabalho, meu pai de bicicleta, rumo à fábrica do Renner, no Navegantes, onde montava calçados de pelica. Verdureiro, leiteiro, o mata-mosquito que vinha regularmente e colava um papel na parede, para marcar as visitas. E tinha a sapataria, meu mirante, com as árvores que meu pai plantou em busca de minorar o calor do verão e que ainda lá estão, delimitando o vazio da tendinha do ?seo Bandeira?, que há muito foi demolida. Havia a criançada, que brincava em meio às espirradeiras e aos bancos de pedra na frente dos edifícios. Ainda vejo Luizinho, correndo de pés descalços, matando bandidos em intermináveis brincadeiras de cowboy. Infelizmente, o bandido ganhou, desta vez. Sei que nem lembrava mais de mim, mas é para ele que dedico esta crônica. Para o Paulinho e toda a família. E para toda uma gente do IAPI que se dispersou e sumiu no mundo, assim como a minha infância, de que teimo recordar numa hora de tanta tristeza.