Li, com o coração apertado, a crônica da Márcia, aqui no Coletiva, sobre a cena triste que ela presenciou, dia desses, numa das esquinas desta Porto Alegre, envolvendo uma Sagrada Família às avessas: mãe, pai e filhos ao relento, batendo queixo de frio. Tenho feito, sem resultado prático algum para quem precisa, meu mea culpa diário pela minha imobilidade diante desta miséria cercada de Roriz e Calheiros por todos os lados. i2b1
Durante muitos anos, tive a ilusão de que as roupas usadas que eu levava para o "roupeirinho" da Sociedade Espírita Bezerra de Menezes, em que me criei, solucionavam parte do problema social ao serem entregues aos miseráveis que faziam fila diante da casa. Mais tarde, me consolei reando às empregadas, faxineiras, ao guarda da rua, o que me sobrava do meu conforto. Hoje, estou com duplo sentimento de culpa, por ver que esta gota no oceano pouco faz diferença e que minha deposição de armas é mais covardia que revolta.
Vivi 25 anos num bairro operário sobre o qual vivo falando, em meus escritos e em especial em meu blog, o IAPI, que fica na Zona Norte desta cidade, num lugar que já foi charco sobre o qual ergueram um dos mais sólidos conjuntos habitacionais deste País. Meus pais ainda moram lá, na mesma rua, a Sobradinho. Que nasce onde colocaram o Viaduto Obirici, com sua estátua da índia chorosa que com suas lágrimas deveria alimentar um lago. Hoje, só há sujeira em volta do monumento que homenageia os primeiros moradores daquela região.
Minha mãe, hoje, me contou que tem de fazer uma volta maior para chegar ao supermercado porque não a o fedor que emana do prédio em que funcionou, durante toda minha infância, um posto de saúde - a Samdu - e hoje abriga clandestinos em seu infortúnio de sobrevivência nem sempre lícita.
O IAPI é a imagem do descaso do poder público que, ao longo de décadas, permitiu que um importante núcleo urbano se transformasse física, econômica e emocionalmente em um pastiche de vila de trabalhadores. Os mais abonados fizeram de casas arquitetonicamente projetadas para se harmonizar ao ambiente pseudomansões. Os que viram o dinheiro minguar em seus bolsos ergueram, nos fundos dos edifícios, peças que aram a abrigar mais e mais famílias.
Nem mesmo os prédios implantados para cuidar da saúde dos moradores escaparam da decadência. Um antigo posto do INSS, entre as ruas Cambai, Brasiliano de Morais e Itacolomi, hoje é central de entrega de drogas e pólo irradiador de assaltos e mendicância. Os moradores próximos, penalizados pela inércia de quem tem em mãos a competência para resolver o problema, se mostram insensíveis com os pedidos justos de saneamento do local. Esta semana, o vereador Sebastião Melo, cujo gabinete vem capitaneando um movimento legítimo que reúne o pessoal da vila e simpatizantes, entregou à gerente-executiva do INSS no Rio Grande do Sul, Sinara Aparecida Pastorio, um dossiê com cópias de ocorrências policiais, relatório da Fasc e matérias relacionadas ao prédio, que está desativado há dez anos, tentando dar novos subsídios ao INSS para a reintegração de posse negada pela justiça em outubro de 2006.
Todas as segundas-feiras, há reuniões na AMOVI, na praça Alim Pedro, de gente que quer solução para a vila. Muitos vão dizer: não é problema só do IAPI, o Brasil inteiro está virando uma incubadora de Favela do Alemão. Mas é o que a Márcia diz: uma ação aqui, outra ali e, quem sabe, a gente consegue evitar que ao menos nossos bisnetos andem pelas ruas sem medo e sem culpa de encontrar crianças tiritando de frio ou, como acontece comigo, filhos de vizinhos, que vi nascer, inchando esta população marginal que só dá lucro para poucos poderosos que vivem para manter esta situação-limite.