E se o governo ajudasse! 3b2p3

Centro de Porto Alegre, primeira sexta-feira de dezembro de 2009, quase quatro da tarde, eu descendo a Borges de Medeiros, saindo do escritório do … 451y3p

04/12/2009 00:00
Centro de Porto Alegre, primeira sexta-feira de dezembro de 2009, quase quatro da tarde, eu descendo a Borges de Medeiros, saindo do escritório do advogado em direção à Junta Comercial. Ouço atabaques e penso: que bom que fosse o pessoal do Oi Nóiz Aqui Traveiz, com seus estandartes, suas encenações teatrais para a rua, saudade que me deu. Na esquina com a Rua da Praia, bolinho de gente, consigo ver um bando de senhoras e de repente, uma cantoria, vozes maduras, afinadas, uma canção para Deus. Uma bacante às avessas do que seria com o pessoal da Terreira. Vou descendo a lomba ouvindo aquele cantar estranho, quase um canto índio e corto caminho pelo antigo fim de linha dos bondes na Praça 15, sinto o cheiro de pastel, estranho a ausência do fedor de urina e dou de cara com barracas brancas no Largo Glênio Peres. Por ali me enfio e descubro uma feira de artesanato. Prendo o o. Se já estava sem saco para ir até a burocracia que me espera, pelo segundo dia consecutivo, no Palácio do Comércio, fico ainda mais motivada a percorrer os estandes. Mas o horário exige, vou em frente. Mergulho nos cheiros do mercado de hortifrutis da Praça Parobé, sou chamada por mais de um vendedor, ouço tudo misturado ? as vozes dos verdureiros se perdem nas dos que anunciam óculos de sol fincados em e de isopor para facilitar a fuga da fiscalização, a menina gorda de seus 10 anos anunciando ?corrente de prata a 1 real?. Por alguns segundos penso que, com tanto pregão, estou de volta ao outro século, ou ao outro. Só falta agora o cara das cobras e poções milagrosas. Volto da missão principal deste périplo e não quero nem saber: vou de barraca em barraca da mostra. Me encanto com móbilis de borboletas de material reciclado, pergunto à moça que chega e que se anuncia como autora das peças do que são feitas: chapas de Raio X. É Arte da Casa o nome do artesanato, está na feirinha da Redenção aos sábados e na Usina aos domingos. A artesã pergunta a uma visitante que diz que colocou fora pilhas de radiografias: ?colocou no lixo certo? Leva centenas de anos pra se decompor?. Mais adiante, os indefectíveis artesanatos gauchescos, madeira com o raio do verniz por cima que dá aquele ar brega, mas peças bonitas, carneirinhos de boa cara em madeira revestidos com pelo de carneiro de verdade, bancadinhas com fogão a lenha, toda a traquitana para chimarrão e tal. À medida que avanço, sobe um cheiro miserável de esgoto, provavelmente das bocas de lobo. Mas tem bom movimento. E me impressiona a criação de pássaros em jornal da Daisy Artesanato, que também fica fixa no Beque. Em especial, as corujas de imensos olhos de botão e as araras surpreendem. Muito fuxico, muito crochê, a moça que faz tapetes com tiras cortadas de pano me mostra os dedos machucados, orgulhosa quando elogio a exclusividade de cada peça. Adiante, uma família de galinhas carijó feita em porunga. Acolá, alguém toca uma quase música no pequeno instrumento de sopro feito de cerâmica, outro bate em imensos tambores que parecem cortados em troncos. Quase na saída, perto de um grupo de kaingangues com roupa igual e um adulto preparando a apresentação das meninas, possivelmente filhas, vejo uma banca de artigos feitos de sucata. Me aproximo. Há chaveiros em pencas com coração e outros motivos em tecido de estampa tigrada, tapetes em crochê feitos em tiras de pano expurgadas de alguma costureira, alguns orixás minúsculos em pano. Noeli Souza está no canto, descalça, cansada mas atenta e atenciosa. Explica que ali tudo é doado ou catado daquilo que os outros não querem. Peças únicas. Ela veio de Carazinho pela segunda vez e, mesmo lamentando ficar só uma semana, se mostra feliz por ter conseguido contrato com casas de religião que gostaram de seus santos que a maioria chama ?bonequinhos?. Zeloza, ela faz questão de esclarecer a quem ignora a real: são orixás, e quem faz tem de saber quem são e o que são. Noeli já não está só neste trabalho de pegar contas coloridas que vão para o lixo, latinhas, tecidos, tules, rendas. Já tem gente, ?desses jogados na rua?, que ajudam a produzir as peças. Onde o poder público falha, lembra, o cidadão age ? e ela fica feliz com o descompromisso de quem joga para dentro de seu pátio o material de que quer se desfazer e que vale ouro para ela e a S.R.C.B Flor da Serra, que funciona na Rua Marechal Doodoro, 435, em Carazinho, bem no Centro da cidade. O entusiasmo de Noeli, que coordena este trabalho, merece repercutir. Humilde, sim, mas orgulhosa de si, de seu pessoal, da iniciativa, do movimento negro a que pertence. Só reclama das barbaridades, dos escândalos, da corrupção. Tudo muito calmamente, com simpatia, com aquele jeito de quem faz acontecer já que ninguém faz por ela. ?Se o governo ajudasse, hem?, me pergunta ela. E vou embora eu, cá pensando: ?E se o governo realmente ajudasse?.