O que o vento não levou 436w44

Eu faço versos como os saltimbancos Desconjuntam os ossos doloridos.(Mario Quintana) Amarrou a égua diante da estalagem, colocou nas costas um saco grande, entrou … 2w71v

03/09/2007 00:00

Eu faço versos como os saltimbancos Desconjuntam os ossos doloridos. (Mario Quintana) 4u4q5u

Amarrou a égua diante da estalagem, colocou nas costas um saco grande, entrou e cumprimentou Ruggero, o proprietário e velho conhecido. Levantou o polegar direito e abancou-se diante de uma mesa de madeira tosca.

Ruggero, sem palavras, trouxe-lhe a caneca de vinho, uma rotina que se repetia há alguns anos, sempre que o jogral aparecia pela cidade.

Quando levantou-se, após breve conversa com Ruggero, o qual concordou em acordá-lo às quatro da tarde, dirigiu-se ao dormitório, no interior da hospedaria.

O calor daquele quase fim de verão sugeriu que se desvencilhasse de quase todas as vestes. Não se importou com a claridade que insistia em atravessar frestas da janela e, minutos depois, sua respiração pausada indicava o sono que deveria reparar o cansaço das estradas.

Antes mesmo de Ruggero vir acordá-lo, separou toda a indumentária típica dos jograis, enquanto tentava adivinhar como seria aquela sua agem por Siena. O calor diminuíra naquela tarde bela e clara. Ficou alegre por sentir um prenúncio de boa acolhida. 

Quando Ruggero bateu na porta, gritou um agradecimento e dirigiu-se para uma área externa ao lado da estalagem. Lá, uma ducha acordou-o de vez.

Pegou seu alaúde, dirigiu-se para o balcão da estalagem, um rápido levantar do polegar, caneca cheia de vinho e, enquanto sorvia a bebida, localizou com o olhar um banco alto e algo como um caixote que lhe serviria de minipalco.

Acabou de beber, fez um aceno para Ruggero, saiu e foi para a praça da cidade, a menos de 100 os.

Ajeitou sua parafernália, foi até a égua, a tordilha Bianca, fez-lhe uma festa na cabeça, levou-a para a estrebaria, tratou-a e voltou ao seu mundo cênico.

Sentou-se no banco e, com a palheta, acordou o alaúde com sons suaves. Satisfeito, e agora dedilhando o instrumento, começou a brincar com uma canção que o encantara numa agem pelo sul da França. Era o prefixo que desde então anunciava o início de suas apresentações. Só música, em muitas das variações que inventara. Os acordes, naquela região toscana, soavam como seu documento de identidade: Salvatore, o jogral. 

Três meninos, com cerca de dez anos, chegaram e sentaram-se no chão, próximos e à frente de Salvatore. Este, com um movimento das sobrancelhas, cumprimentou seus primeiros espectadores.

Eram seis horas quando, com uma barretada, anunciou às quase duzentas pessoas na praça que a récita - canções e poemas - chegara ao fim.

Enquanto se dobrava aos aplausos, aqueles garotos da frente levantaram-se e, em pequenos gorros, recolhiam óbulos dos espectadores. Salvatore, barrete nas mãos, agradecia, além dos óbulos, palavras de estímulo de alguns conhecidos. 

Um observador mais atento perceberia que a praça se esvaziava, mas um interlocutor de Salvatore, o último, demorou-se pouco mais. Era Giulio, o guardião da pomposa catedral.

Pouco depois de sua partida, Salvatore recebeu dos pequenos ajudantes a receita recolhida, devolveu algumas moedas e, eles, brincando alegres, levaram de volta o mobiliário cênico.

Já no dormitório, Salvatore guardou o alaúde no saco de viagem e dele retirou um saco menor, dirigindo-se para a saída.

Na grande praça, enquanto caminhava em direção à catedral, expunha, quase imperceptível, o fato de ser coxo. Ladeou, pela esquerda, a monumental arquitetura sacra e, quase ao fim, uma pequena porta de serviço, apenas encostada, permitiu sua entrada no templo monumental.

Acenou para Giulio, arcado à frente de uma imensa cômoda, dirigiu-se para a imagem de Nossa Senhora, numa lateral da grande nave, retirou umas bolas do pequeno saco e começou a sua exibição para aquela, que há séculos - rezava a crônica - protegera a cidade.

Os malabarismos com as pelotas eram parte do seu antigo ofício de saltimbanco, anterior a uma queda do dorso de Amicco, seu velho cavalo já aposentado.

Aquele tombo, que afetara a perna esquerda, não permitia, sem dor, as muitas acrobacias que mantiveram, por sete anos, sua fama de versátil menestrel e de criativo saltimbanco.

A partir do acidente, as acrobacias exibidas em praças públicas eram, agora, graças ao apoio de Giulio, em versão reduzida e exclusiva, apenas homenagem à imagem de sua adoração.

Terminado o ofertório, deu, na saída, um abraço em Giulio, dirigiu-se à estalagem onde, depois de pequena refeição, recolheu-se e, tudo conferido pra a jornada na manhã seguinte, inclusive a boa receita colhida na praça, dormiu.

Aos primeiros raios de sol, saco no balcão, recebeu de Ruggero uma caneca de vinho, um grande pedaço de pão e um belo naco de salame. Tudo degustado com calma, ameaçou, sem conseguir, ar umas moedas para Ruggero que ainda lhe entregou o farnel, o acompanhou até a estrebaria e ajudou-o a acomodar seus pertences no dorso de Bianca, depois que selada.

Enquanto a égua dava seus os iniciais, Salvatore, com um gesto largo, despedia-se, além de Ruggero, da grande praça e  dos garotos, seus auxiliares, que chegavam correndo e aos gritos. Despedia-se, também, de Siena e tomava o rumo para Firenze. O ar era puro, a manhã era bela e o trote de Bianca, alegre.

Apesar do verão retardar a noite, ela, tímida, chegava devagar quando Salvatore, no dorso de Bianca, atravessava o Duomo de Firenze, bem defronte ao batistério de San Giovanni onde recebera o batismo.

Bianca parecia saber do rumo, pois dirigia-se, por conta própria, para a grande moradia de seu maior amigo, Durante, onde sempre se hospedava e foi recebido pelo irmão dele, sco.

A informação dele era estranha. Durante ara parte da véspera calado, quase mudo e, naquela manhã, muito cedo, sem mesmo dizer para onde ia, saíra a cavalo.

Acomodado no dormitório dos hóspedes, depois da higiene pessoal e com roupas limpas, Salvatore dirigiu-se para a taverna.

Teve um grande sobressalto quando ouviu comentários da morte, na véspera, de Beatrice Portinari. Discretamente pagou a despesa, despediu-se de alguns conhecidos e pôs-se a caminhar na noite estrelada.

Salvatore e Durante eram amigos de infância e únicos confidentes um do outro. Salvatore sabia da antiga e duradoura paixão do amigo, inda que platônica, por Beatrice. Tentava imaginar como teria sido o choque dele com a notícia, mas nem isso conseguia. Resolveu voltar para a casa do amigo e, caso ele já houvesse voltado, ajudar na travessia da dor. Ficou feliz de não haver encontrado, na chegada, Gemma, a esposa dele. Achava que ela desconhecia a paixão do marido mas, quem sabe? Sabia que as mulheres tinham um instinto natural para descobrir coisas de quem tenta esconder.

No caminho de volta, enquanto pisava com determinação o cansado madeirame da Ponte Vecchio, olhando o também velho  Rio Arno, lembrou-se que eram moços e assim como as águas do rio jamais seriam as mesmas, também as dores da paixão seriam outras. Não foi o que aconteceu.

Na véspera, corrigido o calendário juliano para o gregoriano, 8 de junho de 1290, despedia-se da vida, só da vida - Beatrice - musa eterna de Dante Alighieri. 

TANTO GENTILE E TANTO ONESTA PARE Dante Alighieri

Tanto gentile e tanto onesta pare   la donna mia, quand?ella altrui saluta, ch?ogne lingua deven tremando muta, e gli occhi no l?ardiscon di guardare.

Ella si va, sentendosi laudare, benignamente e d?umiltà vestuta; e par che sia una cosa venuta dal cielo in terra a miracol mostrare.

Mostrasi sì piacente a chi la mira, che dà per li occhi una dolcezza al core, che ?ntender nolla può chi nolla prova.

E par che de la sua labbia si mova un spirito soave pien d?amore, che va dicendo a l?anima: Sospira.

É TÃO GENTIL E TÃO HONESTO O AR Tradução - Augusto de Campos

É tão gentil e tão honesto o ar de minha Dama, quando alguém saúda, que toda boca vai ficando muda e os olhos não se afoitam de a fitar.

Ela assim vai sentindo-se louvar na piedosa humildade em que se escuda, qual fosse um anjo que dos céus se muda para uma prova dos milagres dar.

Tão afável se mostra a quem a mira que o olhar infunde ao coração dulçores que só não sente quem jamais olhou-a.

E quando fala, dos seus lábios voa Uma aura suave, trescalando amores, que dentro d?alma vai dizer: "Suspira!"