Descobri no teatro o meu único tema e no camaleão cavalgo o meu poema. w6h3s
Manoel Carlos
Primavera de 1952. Tarde belíssima, São Paulo, Rua Xavier de Toledo, quase defronte ao Harmonia, saudoso bar alemão. Um casal auto-iluminado aproxima-se com sorrisos escancarados e eu pergunto qual o motivo da felicidade tão descarada. Manoel Carlos Gonçalves de Almeida aponta para a Lourdes e festeja: - "Acabamos de saber que ela está grávida".
Exatos dois anos depois, à tarde, quase defronte à Biblioteca Municipal que freqüentávamos, encontro o Maneco, totalmente afônico. Naquela noite, seria inaugurado o Teatro Maria Della Costa, projeto de Oscar Niemeyer. O arquiteto andara por São Paulo onde criou o Parque Ibirapuera, um dos feitos comemorativos do IV Centenário da fundação da cidade que, por clima e topografia, creio piamente ter sido um ato de penitência de Anchieta e Nóbrega.
A construção do teatro fora resultado de um trabalho duro e obsessivo da atriz e de seu marido, o empresário Sandro Polloni. Para o espetáculo inaugural, trouxeram da Itália Gianni Ratto, a quem entregaram a direção de "O Canto da Cotovia", de Jean Anouilh. Maria Della Costa era Joana D"Arc e o afônico Manoel Carlos, o seu pai, camponês vivido que temia que as "vozes" de Santa Catarina e São Miguel, que Joana dizia ouvir na floresta, pudessem transformar-se numa barriga de origem nada verbal. Já a origem da súbita afonia do Maneco era psicológica, foi vencida e ele, como todo o espetáculo, ganhou os aplausos que precederam uma longa carreira de sucesso para "L?Alouette". Carreira tão longa que causou uma afonia nada psicológica na Della Costa, só resolvida por uma cirurgia nas cordas vocais.
Entre o "sem voz" da Maria e a obrigação do teatro ter que faturar, a dialética expressou-se de forma magnânima, colocando em cena um elenco onde o talento de Fernanda Montenegro explodiu. Batismo da Fernanda-estrela, a revelação de Jorge Andrade - que seria um dos mais importantes dramaturgos brasileiros - com "A Moratória", o mais emocionante espetáculo brasileiro à que assisti.
Manoel Carlos integrou-se à TV, ainda nos tempos do "ao vivo", como adaptador de grandes obras literárias, no Grande Teatro Tupi, apresentado às segundas-feiras, onde atuavam, entre outros, a Fernanda, o marido Fernando Torres, Sérgio Britto, Nathalia Thimberg, Milton Morais e cujas direções eram um rodízio, principalmente entre Antunes Filho, Fernando, Flávio Rangel e Sérgio Brito. Maneco adaptava grandes obras da literatura mundial.
Certa vez, Maneco escreveu um argumento dele mesmo e apresentou-o a Flávio Rangel, grande amigo nosso. Flávio gostou, resolveu dirigir e ambos ponderaram que Maneco não tinha ainda o porte de um Dostoievski ou de Flaubert, por exemplo. A mistura dos nomes de dois autores que Maneco lia no momento deu vida a Dorothy Blair. Flávio, como de hábito em relação aos autores que dirigia, criou a biografia da Dorothy e ou-a ao elenco. Quando da exibição na TV, alguns artistas já haviam ouvido falar da autora e outros até conheciam outras obras da mesma? Só para o Grande Teatro Tupi, de São Paulo, Maneco adaptou ou escreveu mais de 100 textos, todos com o mesmo formato de roteiros cinematográficos.
Manoel Carlos, às vésperas, hoje, de ver no ar mais uma telenovela de sua autoria, dirigiu grandes sucessos da TV, como "A Família Trapo", "Brasil 60", (61, 62?)? (estrelado por Bibi Ferreira), "O Fino da Bossa" (Elis Regina e Jair Rodrigues) e os primeiros tempos do "Fantástico".
A gente se conheceu na Biblioteca de São Paulo e um monte dos então jovens freqüentadores cultiva, até hoje, uma sólida amizade iniciada aos pés de uma estátua de Minerva. Viciado em literatura, Maneco publicou livros e o menos conhecido deles, "Bicho Alado", ilumina esse poeta que se define como um camaleão. No último poema desse livro, "Imitação de Borges", Maneco cita referências comuns a muitos amigos, inclusive a mim mesmo. Por ser longo, reproduzo apenas alguns versos.
Pela turma da Biblioteca (adoradores da estátua de Minerva), no inverno de 1948. ? Pelo verso "a sombra projetada na calçada é uma mutilação que aceitamos" e por Mario de Almeida, seu poeta. Pelo Bar Harmonia e por todos que lá estavam na noite em que Chico Alves morreu, Por Cyro Del Nero, na tarde de sua partida para a Grécia, há muito tempo, em Santos. Pelo Sabag, Antunes, Pavesi e Barone - comigo (famintos na porta do Jeca). E por tudo que tenham conseguido diante dos espelhos. ? Pela descoberta, aos dez anos, de Monteiro Lobato e Castro Alves. Pelas descobertas que se seguiram. E por tudo aquilo que para sempre há de ficar oculto. ? Pelo Flávio Rangel , a partir dos debates da "Cotovia". Pelo clamor de justiça que rasga o coração de Carlito Maia.
Maio de 1964. A ditadura obrigara-me a fugir de Porto Alegre. Voltei para a minha São Paulo. Manoel Carlos e eu atravessamos a praça onde se localiza a Biblioteca Municipal. Maneco levou-me à Magaldi, Maia Propaganda e, naquela mesma tarde, conheci Carlos Prósperi, Carlos Queiroz Telles, João Carlos Magaldi e Carlos Maia de Souza, o Carlito Maia. Início de grandes e duradouras amizades que, muito antes do adeus, eram garantidas por lastros-ouro de afeto.
Carlito, sentei-me para escrever um pouquinho sobre você e acabara de chegar um e-mail do Cyro sobre o significado da Páscoa e outro do Maneco, desejando-a feliz. Fui atropelado por lembranças e dei-me conta que o jornalista Maneco Jr., mês que vem, completa 53 anos. Lembrei-me, também, que os dois ícones mais populares da Páscoa são o ovo e o coelho, ambos ligados ao advento de novas vidas. Coube-me, em nossa fraternidade, o primeiro a ter notícia do advento do Manequinho, junto ao Harmonia, um dos nossos pontos de confraternização. Você ficaria zangado se eu perdesse essa oportunidade de falar de e sobre amigos. Nem peço desculpas, que é para não despertar zanga maior. A gente se vê.
Inté.