Já escrevi aqui sobre um grupo que se fez amigo aos pés da estátua da Biblioteca Municipal de São Paulo, na encruzilhada dos anos 40 e 50 do século ado. 1x6su
A biblioteca foi batizada de Mario de Andrade e a amizade crismada no decorrer das últimas décadas.
Nos meus escritos aparece Cyro Del Nero e, infelizmente, uma das últimas colunas foi sobre o desaparecimento de Fábio Prado Jr.
Recebi, além do próprio Cyro, de tantas fontes diferentes o texto abaixo que resolvi divulgá-lo aqui, iluminando um pouquinho mais a memória do amigo filósofo e, ao mesmo tempo, reafirmar minha certeza que amizade é dádiva.
BENJAMIN Cyro del Nero
Do hebraico, biniamin, filho da mão direita , filho mais moço e preferido de Jacob. O mais jovem de um grupo . O predileto .
Foi o poeta Pedro Morato Krahenbüll quem primeiro o chamou assim : nosso Benjamin.
E havia mesmo uma doçura no mais jovem de nós que já estávamos ali ao pé da estátua da Biblioteca Municipal Mario de Andrade quando ele chegou, nos anos cinqüenta. A grande maioria do grupo era autodidata . Ele não : ele cursava Filosofia na Maria Antonia. Mas o que mais o diferenciava era seu constante terno , seu constante paletó , sua correção e o sobrenome paulista tradicional que ele trazia consigo sem pose , sem pedanteria e sem decadência , com a boa confluência de delicadeza e distanciamento . E, sobretudo , ele tinha seis anos menos do que nós . Hoje , quando temos setenta e cinco a diferença não se faz sentir , mas aos vinte e quatro anos , a diferença era sensível .
E trazíamos conosco poemas nos bolsos . A poesia que criávamos era o nosso melhor , não importava a altura da mesma . O que importava é que naqueles dias a havíamos criado e nela havia algo de nossa atualidade existencial. Havíamos registrado uma descoberta , uma vivência , uma palavra , uma maneira de dizer algo que julgávamos até então , indizível . Éramos constantes descobridores de livros e palavras .
No querido Benjamin, havia uma grande curiosidade por nós que não cursávamos nada e, entretanto, tínhamos uma sensibilidade e uma acuidade poética e artística . Ele nos via em nosso aquário e as nossas águas significavam para ele uma conquista diferente da sua . Talvez desejável.
Nós o amávamos como a um Benjamin mais moço e predileto , mas nada havia de paternal nisso, apenas o recebíamos e ganhávamos com isso , dando-lhe distinção e respeitando o insólito compromisso - para nós , que estávamos sempre disponíveis ? que ele tinha com os seus horários acadêmicos .
Seu riso e seu gesto tímido sempre segurando um dos botões de seu paletó, como se fosse abotoá-lo, eram sempre bem-vindos .
Mais tarde nos separamos, alguns indo para o Rio de Janeiro , outros crescendo com atividades que excluíam a Biblioteca .
Manoel Carlos e eu , no primeiro ano dos anos sessenta estávamos juntos na Televisão Excelsior, e Jean Paul Sartre viria ao Brasil. Álvaro Moya dirigia a televisão e abriu a possibilidade do filósofo francês ser entrevistado. Creio que Manoel Carlos convocou nosso Benjamin para a entrevista . É com emoção que o vemos na foto que restou desse encontro , na mesa com Sartre.
Um dia , quatro de nós fomos à Praça da República e um lambe-lambe nos fotografou. Nosso Benjaminl, Manoel Carlos, Flávio Rangel e eu . Selamos nessa foto uma idéia , uma atmosfera e mesmo um credo . Sem sabermos.
Nesses anos sessenta, o fascismo da década invadiu a Faculdade de Filosofia da Maria Antonia. Nosso Benjamin pertenceu à resistência e diante da indignidade na qual se quis colocar a inteligência brasileira , exilou-se na França. Depois cresceu como Professor Doutor até tornar-se o Professor Emérito . Nenhum de nós , a não ser ele após brilhante carreira , tornou-se professor universitário , até que a USP me convidou por Notório Saber e nas mesmas condições foi o convite da Fundação Getúlio Vargas ao Maurício Trachtenberg, outro autodidata total , formado como eu aos pés da estátua .
Poucas vezes nos encontramos depois . Eu o convidei para estar na banca que julgaria minha candidatura à titularidade. Ele disse que sem dúvida estaria lá , mas dias depois a sua secretária me comunicou que ele tinha um compromisso anterior . Nos encontramos, há muitos anos , em um elevador na Rodoviária da Barra Funda . E naquele encontro fortuito houve ainda aquela relação de ser eu o antecessor e ele o Benjamin. Estranhíssima e tão antiga sensação . Esta mesma experiência tivemos nós quatro da foto da Praça da República , numa reunião no Hotel Sheraton no Rio de Janeiro . Houve a coincidência de estarmos lá os quatro velhos amigos e mais o Mario de Almeida, que não havia estado na foto da Praça da República . Mario de Almeida, Manoel Carlos e Flávio Rangel moravam no Rio . Flávio morreria logo depois e nós sabíamos do seu estado . Flávio estava nos dando uma aula de como morrer e afirmou sorrindo ter tirado o 13. Ele me ouviu com alegria contar-lhe sobre a homenagem que Bibi Ferreira lhe havia feito em ensaio do Meno Male.
Manoel Carlos contratou um fotógrafo e refizemos a foto feita décadas antes . Nas mesmas posições . Nosso Benjamin estava no Rio de Janeiro para fazer uma conferência sobre um ponto escuro do conhecimento , uma falha na visão de nós mesmos : o problema edipiano. Lembro que as suas mãos estavam suadas e extremamente trêmulas, e mais tarde, observei isso em conversa com Manoel Carlos, que me contou que o tremor era simplesmente por ele estar conosco naquela reunião . Ele mesmo havia confessado ter ficado extremamente tímido e nervoso .
O fotógrafo que refaria a foto da Praça da República nos fotografou, se despediu, sumiu e nunca vimos a foto .
E agora alguém está lendo um jornal - é uma página inteira com um texto e sua foto - e me informa que ele morreu. Não pude me conter e chorei indignado e surpreso não querendo acreditar na notícia . Não . Quando morre um Benjamin há algo de errado e injusto nisso. É realmente uma perda , um contratempo , um erro de contagem do tempo .
Hoje, uma semana depois , nos jornais novamente uma foto sua , de dois anos atrás , tão idoso quanto nós outros . A diferença de idade se havia ido e nos igualamos.
Francisco Rolfsen Belda, um colega seu da USP de São Carlos, transcreve uma entrevista com ele . E observa que os estudos do Professor Emérito Bento Prado Jr. sobre a subjetividade o levaram a se aproximar de psicólogos , matemáticos, biólogos e outros grupos de ciências exatas e aplicadas para formar um heterogêneo núcleo de pesquisa . As pesquisas de Bento estavam na fronteira entre ciência e filosofia .
E me lembrei de versos de Carlos Drumonnd de Andrade, o poeta que deu a Bento e a todos nós um vocabulário para a vida toda e a poesia que ainda carregamos no bolso :
"Mas suas letras mais doutas são as escritas no sangue , ou sobre a casca das árvores ".