O Brasil não tem problemas, só soluções adiadas. (Câmara Cascudo) 4k1i1p
Final dos anos 70 do século ado, eu viajava pelo Nordeste, como um dos responsáveis pela implantação, no Brasil, do Telecurso da Fundação Roberto Marinho.
Na mesma ocasião acontecia, no Rio Grande do Norte, um encontro sobre cultura popular. Entrei no elevador do Hotel Luxor, de Natal, e o chargista e amigo Jaguar olhou-me surpreso:
? Bebi muito ontem, mas você é o Mario de Almeida, não é?
Era.
Naquela época, ir a Natal e não comer a carne de sol no restaurante do Lyra era pecado maior que ir a Roma e não ver o Papa. Fomos ao Lyra, meu companheiro de Fundação, Calazans Fernandes, ex-secretário de Educação do Rio Grande do Norte, e eu.
Por coincidência, muitos participantes do Encontro estavam lá, entre os quais o anfitrião, o potiguar Câmara Cascudo - autor da obra mais substancial sobre as festas tradicionais e o folclore brasileiros - e Gilberto Freyre, o mestre pernambucano que desde a publicação, em 1933, de Casa Grande & Senzala, ou a ser referência internacional em sociologia brasileira.
Por uma dessas venturas, fomos apresentados e coube-me o privilégio de sentar-me entre ambos. Escrupuloso que sou, adverti-os que somente sentaria com o prévio assentimento de colocar o fato no meu currículo, o que foi saudado com gargalhadas. Mal sabia eu que, quase 20 anos depois, caberia-me outro privilégio, o de ser convocado para escrever um livro sobre a história do comércio no Brasil, o que me colocou em contato com Sylvio Pedroza, chefe de gabinete da Confederação Nacional do Comércio, que, quando governador do Rio Grande do Norte, foi responsável pela publicação de toda a obra de Câmara Cascudo até então produzida.
Essas lembranças ocorreram-me quando li na Internet a origem de uma série de expressões, entre as quais "Não entendo patavina". Na Internet está assim:
"Os portugueses encontravam uma enorme dificuldade de entender o que falavam os frades italianos patavinos, originários de Pádua, ou Padova, sendo assim, não entender patavina significa não entender nada".
Essa explicação lembrou-me que lera, há muito, em artigo de Câmara Cascudo, a origem correta da expressão, muito pouco conhecida. Fui à luta, achei-a e transcrevo parte:
"Que quer dizer patavina? Coisa nenhuma. Nada. Reforça a frase em que se nega o conhecimento de alguém. "Ele não sabe patavina de História", dirá que o criticado é mesmo jejuno de assuntos históricos.
De onde virá o "patavina"?
Vem de longe, no tempo e na História, merecendo recordação. Curioso é que Patavina significava vocábulo relativo aos motivos materiais e culturais alusivos à moeda e não ao conhecimento intelectual como atualmente usamos.
Até o século XV era popularíssimo o jogral do vagabundo músico que ia de castelo em castelo, de povoação em povoação, de feira em feira, contando histórias ou cantando rimances de cavalaria, aventuras espantosas de cavaleiros andantes que venciam dragões e exércitos, defendendo os humildes, os pobres, os oprimidos, vivendo por sua Dama. Esses rimances, chamados pelos ses chanson de geste, povoavam de encanto o espírito das populações e o pensamento dos fidalgos, nas altas salas dos castelos que coroavam montanhas.
Ouvir uma canção ou uma história era delícia para todo infansão, rico-homem, burguês, vilão ou servo de gleba. Se um jogral chegava a uma parada sem dinheiro para satisfazer ao pedágio exigido, bastava entoar uma canção. Estava pago o direito ao trânsito.
Nesse ambiente de jogral e jogralice nascera "patavina", de poitevine, poitevin, de Poitiers, capital de Poitou, na França, terra de jograis afamados. Cunhava-se a poitevine, moeda com que se pagava o jogral. A Poitevine, Potevina, Patavina, valia um ceitil, dizendo de sua insignificância como unidade.
Teófilo Braga (?): "A moeda com que no século XIII se pagava aos jograis que vulgarizavam as Canções de Gesta era uma espécie de ceitil chamado poitevine; na nossa gíria popular ainda se emprega a palavra patavina como sinal do diminuto valor de uma coisa".
Dessa "patavina", Camilo Castelo Branco criou o patavinice, sinônimo de ignorância e parvoíce.
Essa é a História da Patavina. Não é muito popular mesmo para os letrados profissionais. "Ainda em 1913, Cândido de Figueiredo ignorava-a?" Acrescento que, assim como o Cândido de Figueiredo, os verbetistas dos dicionários Aurélio e Houaiss não entendem patavina dessa origem.
Quanto à carne de sol, mais o feijão de corda, a macaxeira e a manteiga de garrafa do Lyra - que criou uma réplica no Recife, Restaurante Seridó, no bairro de Madalena - é assunto de gastronomia, onde se podem inserir as lagostas de Fortaleza, a compota de limão do Piauí, as "bases" de São Luís e, em Belém, o prato proibido - muçuã -, que vale uma expulsão do Paraíso. Em Manaus, terra da indolência, a partir de uma determinada hora, só se come bem na zona do meretrício onde, em 1978, Eva Wilma, Lélia Abramo, Lílian Lemmertz, minha mulher e eu degustamos uma sopa inesquecível. As atrizes apresentavam Esperando Godot e o casal, de férias, inseria-se na indolência manauara.
Inté.