Uma vida difícil de perder 6e6n6z

Ninguém em sã consciência gostaria de perder absolutamente nada. Não está explícita na negação de perder, nenhuma relação de apego, materialismo, barulho de máquinas … 5x4d2c

23/11/2006 00:00

Ninguém em sã consciência gostaria de perder absolutamente nada. Não está explícita na negação de perder, nenhuma relação de apego, materialismo, barulho de máquinas calculadoras que já não aceitam tantos zeros.  Mas, sim, está implícita uma relação imensa de carinho com o ato de construção do que se conquistou. Sim, uma simbiose de conhecimento com tudo que se somou a nossa vida ao ganharmos algo. Sim, um atestado de cumplicidade eterna, talvez mais forte do que aquelas promessas ditas pelos casais no altar, às vezes desfeitas na primeira piscada de olho para o lado mais infiel do par. 4g3769

Talvez isso explique um pouco a inável e amável (quanta contradição) cegueira e possessividade do cidadão de Porto Alegre pelas belezas de sua cidade. Nós e só nós, com certeza, temos o por do sol mais lindo. Somente na capital gaúcha temos os parques mais lindos, arborizados, floridos e encantados. E, não se engane, forasteiro de outra cidade, aqui temos uma rua da Praia que não tem praia, um porto separado por um muro todo grafitado, uma praça em que as árvores, só no final de outubro e primeira quinzena de novembro, todo o santo ano, dão livros. E, seu turista, somos muito hospitaleiros.

Essa paixão que o porto-alegrense nutre pela sua cidade não é algo imposto.  É um acúmulo de coisas lindas que ele foi ganhando, ou conservando, com o ar do tempo. É um carinho que ele foi ganhando, em cada nova avenida que recebeu asfalto, em cada nova rua que foi iluminada, em cada novo parque que foi construído. É uma cumplicidade eterna. Portanto, nem eu, e imagino nenhum porto-alegrense de nascimento e coração, aceitaria perder a sua cidade que lhe faz companhia a todo amanhecer. Pensando bem, se a troca fosse pela eternidade em Pasárgada?..

Comecei, deliberadamente, exemplificando a paixão por Porto Alegre, a fim de não "entrar de sola" no assunto. Mas, com a paixão pela cidade e o horror da perda, tento chegar na imensa dificuldade que é lidar com a partida de um ente querido. Não adianta alguém com sua sabedoria me dizer que a gente deve estar preparado, que isso um dia irá ocorrer. Blá, blá, blá?Respeito a sua teoria. Mas a prática é outra. Não serve também a teoria do espiritismo de que a pessoa desencarnou, que não morreu, irá viver em outro plano. E nem, a mais simplista popular que diz "Deus dá o frio conforme o cobertor".

Vocês não vão acreditar. Acabou de entrar, feito um terremoto, com a sua pressa de anteontem, a Gabriela Martins Trezzi, minha filha. Como não consegui ir trabalhar na quarta-feira em função de uma certa "indisposição intestinal", ela me encheu de beijos e abraços e carinhos sem ter fim, e perguntou como foi a minha tarde (abafada na cama), o que havia comido (nada),  se tinha sentido saudades (é claro) e, antes de eu ter tempo de perguntar se tinha tema, como foi na prova, se o lanche estava bom, a pequena notável de 12 anos e uma beleza indescritível, entrou no seu banho pré-adolescente de 45 minutos.

Ela tem apenas 12 anos. Já me ensinou a destrancar um lance aqui no computador que eu não entendo, que ficar pode ser simplesmente ficar (ah, bom?),  que bonitinha é uma feia arrumada e cantarolava há algumas semanas atrás as músicas do "Black eyed peas". Disse que se eu quiser, quando ela tiver um tempinho livre, pode me ensinar a criar um perfil fake no Orkut. Aliás, tenho carteirinha de mãe moderna sim. Sabem porquê? Mordam-se de inveja. Estou no Orkut, tenho umas 155 comunidades, amigos são poucos, porque ainda sou daquela linhagem que considera amigo algo muito, muito especial.

Daí, que a mãe tri moderna, super radical, que conversa tudo com sua pequena pré-aborrescente (aí, escapou), tem evitado de entrar no Orkut desde que ocorreu a morte do professor pianista e da menina de 13 anos, notícia dos principais jornais do RS nos últimos quatro dias. Não me entendam mal. Livrem-me de pensar que o Orkut é o culpado por tudo, que a Internet deixou tudo liberado, que as crianças estão soltas e que se isso ocorreu, a culpa é da família que não tinha tempo para a menina. Deus, que neurose. Já não basta a dor da metade amputada. Da saudade latejada, como uma fisgada, no membro que se perdeu.

Mães, principalmente vocês, não têm culpa de amar demais um pedaço arrancado do seus ventres. Mães, vocês jamais devem se punir pela preocupação excessiva, pelo casaco na hora de sair mesmo quando tá um pouquinho de calor, pela pergunta chata querendo saber quem está telefonando. Porque não existe nada mais difícil no mundo do que uma mãe perder um filho. Tudo no mundo se recupera. Menos a perda do olhar do filho (a). Menos uma metade arrancada. É como se uma mãe tivesse perdido metade dos seus sinais, é o pior tormento. Como disse Chico Buarque, em "Pedaço de Mim", a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu.