Novos vizinhos do Bomfim 4p352c

No sábado à tarde, conforme orientações médicas que sigo com rigor, saí pelas redondezas do bairro Bomfim para uma caminhada sem maiores intenções. Deixei … 1dy62

28/02/2007 00:00

No sábado à tarde, conforme orientações médicas que sigo com rigor, saí pelas redondezas do bairro Bomfim para uma caminhada sem maiores intenções. Deixei a minha casa e irei as árvores que ainda sobrevivem na rua Tomás Flores e que a deixam tão especial. Junto, carreguei lembranças de um tempo adolescente que ali vivi e não volta mais. Logo, em seguida, cruzei a rua Garibaldi, onde no seu encontro com a Rua José Otão abrigava parte de um terreno sem suposta ocupação. Pois, foi ali, no retorno de meu eio, que encontrei novos vizinhos com todas as suas mobílias. 4d1o4q

Os inquilinos do terreno numa esquina nobre do Bomfim, devidamente tomado em menos de 20 minutos - o tempo máximo de minha caminhada -, estavam preparados para ficar um período razoável. Gente humilde. Gente sem casa. Gente sem carteira assinada. Gente sem um provável futuro feliz. Mas, com um desejo de viver que contrastou com a minha vontade de chorar. Fiquei sem saber o nome e sobrenome dos novos vizinhos porque, em ato contínuo, atravessei a rua, como a maioria da população faz temendo que os sem-dinheiro venham pedir uma ajuda para os que am.

Meu peito se apertou diante da minha covardia e parei um pouco na esquina para observar melhor. A família era composta de um prole grande. Pai, mãe e três crianças, a menor não deveria ter mais de um ano. O pai, com barba por fazer e um olhar perdido de esperança, ajeitava a cama dos filhos com panos e panos para amaciar o papelão que serviria de colchão. De algum aparelho qualquer saía uma fumaça que indicava algum sinal de comida, mas não consegui identificar do que se tratava. Um dos filhos, o mais velho, percorria as latas de lixo dos edifícios do bairro à caça de mais alimentos.

Eles vieram de algum lugar caminhando, pelo aspecto de cansaço do progenitor. Armaram, em minutos, uma espécie de casa, simples, sem cadeiras na calçada, sem varanda e só flores tristes e baldias. Como diz a música "Gente Humilde", era preciso escrever em cima da fachada, que não existia, que ali existia, a partir daquele momento, um lar. Sem planos. Ficariam na esquina nobre enquanto fosse permitido. Mostravam uma certa alegria por encontrar algum canto para se encostar e sossegar um pouco. Mas a minha tristeza pela incapacidade de ajudar crescia também progressivamente.

A mãe da família estava um pouco escondida. Sentada, mal acomodada entre alguns papelões que imitavam uma cadeira ou algo semelhante a um assento. Um seio para fora da camiseta regata era sugado com força pela criança menor. O filho do meio dormia também sob os afagos da mãe. Quando terminou de amamentar o filho pequeno, a mãe jovem, aparentando não mais de 21 anos, levantou e ajeitou a barriga volumosa que já molda um novo ser. Em breve, aquele ventre expulsará um novo indivíduo para somar-se aos vizinhos e exigir um lugar nas casas precariamente construídas com as sobras de outras casas.

Rezei, silenciosamente, para que Nossa Senhora do Bom Parto protegesse aquela mãe que preparava outra criança. Rezei a Deus pedindo mais sorte para toda a família. Piedade para que os novos vizinhos não percam a esperança e a vontade de continuar sobrevivendo. Mas meu ato de contribuição ficou nisso. À noite, em casa, tentando dormir protegida por limpos lençóis, relembrei a cena e fui assaltada por um medo de que nós, os cidadãos com alguma coisa (teto, comida, salário, saúde, educação?.), já tenhamos perdido a capacidade de indignação, de compaixão, de solidariedade.

Será que tanta gente vagando pela rua sem rumo, pedindo dinheiro ou alimento, já nos cegou e acovardou nossas ações? Será que a quantidade de famílias que acampam em terrenos baldios com seu mobiliário improvisado calou a nossa voz e nem mais protestamos para tentar reverter a situação? Será que os meninos que fazem malabarismos nas esquinas, aguardando alguma moeda, já congelaram o nosso coração e nos fazem fechar correndo o vidro do carro?