A minha alma tá armada e apontada para a cara do sossego, pois paz sem voz, não é paz, é medo. E, quando eu falo com a vida, ela me diz qual a paz que eu não devo conservar para tentar ser feliz. Tenho falado com a vida ultimamente. Momentos de intensa magia. Densos. Nem sempre ouço o que gostaria. Como diz na música do "Rappa", pela paz que eu não quero seguir itindo, descarto, desde logo, as situações constrangedoras, as pautas chatas, as pessoas chicletes, aquelas conversas que dão nó na garganta, os pedestres que não sabem andar nas ruas entulhadas do centro de Porto Alegre e qualquer gosto amargo. 3z6q67
Quando se chega a uma idade mais avançada e já se eliminaram algumas etapas obrigatórias na vida - os ritos de agem-,a gente não quer mais muita incomodação. É como se fosse um direito adquirido. E alguém vai contestar? Se sou poderosa comigo é porque atingi certo acúmulo. Hoje, eu me permito a opção de escolher a esquina que vou cruzar, os amigos que vou continuar procurando, os momentos que eternizarei na minha lembrança, os afetos que ainda alimentarei, os carinhos que aceitarei, os livros que vou reler e os discos que não canso de escutar. Quem seleciona os prazeres sou eu.
As escolhas até podem trazer efeitos contrários. Mas sempre se está sujeito às contra-indicações previstas na bula. E quem termina pagando pelo, digamos, "risco márcia" é a própria. Então, não custa embaixo. Por que devo caminhar sobre pedras ásperas se existe um trajeto florido e arborizado? Por que escutar uma música sem pé nem cabeça ao ritmo de funk se posso presentear meus ouvidos com o som de um Tom Jobim, Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, Ney Matogrosso, Cazuza, Luiz Melodia, Raul Seixas e mais uma lista interminável?
Pode até parecer pecado tanta pretensão. Eu classifico como "atestado de burrice", neste estágio da vida, marcar as respostas erradas, mesmo as de múltipla escolha. Vou deixar para os políticos errar nas suas atitudes, eles devem prestar contas aos eleitores. Para os medíocres fingir que não percebem o olhar tristonho do menino de rua pedindo um pedaço de pão. Para os cientistas queimar seus neurônios na pesquisa de vacinas para doenças como a AIDS, que ceifam diariamente mentes criativas que fazem falta no cotidiano da cultura mundial. Para os intelectuais traçar as novas filosofias.
Eu quero muito pouco. O que pode parecer muito. Não é. A idéia é falsa. Eu quero poder irar um gesto simples de solidariedade, aquele que é feito sem a intenção de sair na mídia. Eu quero poder entender que um amigo quis dizer simplesmente que não poderia sair comigo porque tinha outro compromisso, sem ver qualquer outra "teoria conspiratória" atrás da negativa. Eu quero conseguir, sempre, me enternecer com as pautas que faço e que me mostram um mundo real e diferente daquele que me abriga. Eu quero sempre permanecer com a capacidade de continuar me indignando com as injustiças sociais, mesmo que isso não seja o lead do meu discurso diário.
Não se trata de uma lista de boas intenções, de "menina comportada" que cometeu um erro e agora promete que não vai mais fazer arte. Nem se trata de uma cidadã arrependida com sua pouca participação na sociedade, porque sempre fiz o que podia neste latifúndio para melhorar o social. E muito menos um rol que vou pendurar na maçaneta do quarto com as "roupas sujas" que podem ser lavadas. Nem meu acerto de contas final, porque ainda não pretendo deixá-los e acredito em reencarnação.
É mais do que isso. Quase uma declaração de que ainda não vivi tudo, mas já posso dispor de certos privilégios. Como agradecer todo o dia pelo fato de acordar. Como ao acordar, abençoar o beijo carinhoso de minha filha. E, em seguida, dar um bom dia gostoso a minha mãe. Como ao saudar minha mãe, fazer disto um gesto contínuo a minha família que sempre me deu um amor indescritível. E, ao lembrar do amor de minha família, conservar com uma saudade gostosa o carinho de quem já partiu. No fundo, eu quero uma casa no campo, onde eu possa levar meus familiares, meus amigos, meus discos, livros, cachorros, incensos e nada mais.