Juan Villoro é um escritor que não se tornou nem covarde nem canibal com a agem do tempo. Quem afirmou isso foi o Roberto Bolaño, velho amigo dele. Tenho dúvidas sobre o que isso significa, mas soa bem, não? Julio Villanueva Chang, fundador da revista peruana Etiqueta Negra, disse que Villoro encarna um caso raro de "possuir uma inteligência sem vaidade" e que reza pelo credo de Gay Talese: "Dizer a verdade sem ofender". Belas frases também, mas com a vantagem de fazerem sentido, pelo menos pra mim, que desejo seguir nessa trilha desde que li Robert Louis Stevenson e Anton Tchekhov. Como, por manias da idade e falta de grana, leio menos e releio mais, minha ignorância da literatura contemporânea aumenta dia a dia. Pensa que me aflijo? Confesso: só quando topo com um livro como Arrecife, do Juan Villoro. Sim, foi vergonhoso - a Companhia das Letras publicou Arrecife em 2014, e ei batido, no que fui acompanhado por muita gente pelo visto. Pior, peguei pensando que se tratava de um romance policial desses pra dar uma folga pra cabeça, tão maltratada pelo noticiário e outros tóxicos do dia a dia nacional. Nas primeiras linhas, a alegre desconfiança: parece que me enganei. Parece? Tinha me enganado redondamente. Um livro discreto, sim, mas que age como veneno, uma pequena dose a cada nova página - quando nos damos conta, não há mais soro nem Cristo que salve. No fim, uma sensação de incerteza, como se eu não soubesse bem o que tinha lido ou como se não soubesse o que fazer com aquela leitura. Por pouco não disse: "Pero qué hijo de la chingada este Villoro". Preciso reler agora mesmo, pra acertarmos o o. Não reli ainda, mas me informei um pouco. Considerado o escritor mexicano mais importante, muito traduzido, Villoro a praticamente em branco no Bananão, pródigo na badalação desses escritores de quarta que a Gringolândia nos empurra como tantos outros produtos pasteurizados. As poucas resenhas que encontrei sobre Arrecife são a preguiça de sempre - dão num resumo da trama e saem de fininho na hora de opinar ou confundem três ou quatro frases descosidas com crítica. Há ainda umas entrevistas - boas, por sinal, mas acho dureza quando o que há de melhor sobre um livro é dito pelo próprio autor. Vamos ao romance, às minhas surpresas e delícias. Deixemos a trama de lado. Ela é boa - quer dizer, simples, plausível, a quilômetros dos folhetins mirabolantes do gênero -, mas o livro não depende dela, não lemos presos por uma teia de fatos, nem pela ânsia de uma revelação final pra nos deixar de boca aberta, e sim pelo conhecimento dos personagens, pela convivência com eles. Quem são esses caras estropiados? Como vieram parar numa praia arruinada e num hotel feito como uma pirâmide maia? Como tantos hotéis vazios dão lucro? De onde a sensação de que o mundo já acabou e os profetas do apocalipse vagam mudos? Em algum lugar, Villoro diz que se interessava em lidar com uma memória imprecisa. O personagem-narrador de Arrecife, velho roqueiro com a cabeça detonada pelas drogas, só sabe o que viveu pela versão de um colega de banda. Narrador inconfiável na segunda potência, como se vê. Mas Villoro vai mais longe: a própria percepção do presente também é difusa, de modo que a investigação do assassinato é meio sonâmbula. Não só. O famoso hotel, "onde a maior atração turística é o perigo", como a edição nos garante na capa, também parece meio sonâmbulo. Tudo chega ao narrador como que com atraso, um tanto desconexo, mais sombra de fato que fato. Agora é hoje ou ontem? Se sou a memória de outro, que garantia tenho de que você é você? Isso dá uma sensação de agonia, de desencanto, que às vezes é cortada por surtos de humor negro, talvez lapsos de lucidez do personagem. Isso é muito bom. É literatura, me entende? Não uma mensagem, mas uma experiência. Não houve um resenhista que não tenha notado que a desgraça do México seja o atrativo turístico vendido pelo hotel La Pirámede. "O que para nós é horrível para eles é um luxo. O terceiro mundo existe para salvar os europeus do tédio." Em entrevistas, Villoro lembra que tem gente que vem ao Bananão pra conhecer favelas e que no México há excursões clandestinas através da fronteira com os EUA apenas pra se sentir o perigo que os imigrantes ilegais sentem. Tudo bem. Mas os resenhistas esquecem o principal: nada disso é mostrado como se mostraria num filme hollywoodiano, com gente levando porrada na cara, perseguições de carro em alta velocidade e tiroteios em que se gastam mais balas que num mês na Síria. Também não há um herói intrépido, bonitão de queixo quadrado e abdômen tanquinho. Em Arrecife, a violência é parte do cenário, como a praia arruinada, o hotel maia, a guerrilha, o tráfico ou a corrupção e a miséria. Os personagens se movem numa geografia física e numa geografia - com perdão da linguagem nada seleta - social e simbólica. Sente-se que você pode ser golpeado a qualquer momento, mesmo sem motivo, e isso faz parte da normalidade. Há quase que uma resignação - o México é isso mesmo, ou a vida é assim mesmo, ou estou numa situação em que pouco importa. Como Juan Pablo Villalobos, no extraordinário A festa no covil, Villoro mostra a brutalidade de modo indireto e, assim, é muito mais eficaz. No final, a redenção possível, quer dizer, pequena, problemática, talvez efêmera. Sintam o clima: "Aparentemente éramos isso: "família". A expressão não pareceu inexata, não nesse momento. Se não, como se chamam os que correm para que o menor ganhe?". Belo livro, sim, senhor. Um livro que vai muito longe, sem parecer ir ou demonstrar esforço, o que é a definição de arte segundo André Gide. Com grande economia de meios, até sua ambição fica oculta. Imperdoável que nossos resenhistas não tenham se dado conta e que Arrecife tenha sido vendido como apenas mais um romance policial.
A violência como turismo 4w652t
Juan Villoro é um escritor que não se tornou nem covarde nem canibal com a agem do tempo. Quem afirmou isso foi o Roberto … 3j2925
17/07/2017 14:58
/ Atualizado em 19/07/2017 11:02