Xô baixo astral

Fu Lana entrou em um amigo secreto virtual. Um coleguinha tri esperto, desses fissurados na telinha dia e noite, resolveu criar um grupo bastante …

Fu Lana entrou em um amigo secreto virtual. Um coleguinha tri esperto, desses fissurados na telinha dia e noite, resolveu criar um grupo bastante eclético em um site que controla grupos de amigos secretos. Estava previsto sorteio aleatório dos nomes em data específica e, ali no AS, todos fariam as combinações da festa com direito a murais eletrônicos para troca de recadinhos anônimos.


Ia ser divertido, dizia ele. Acontece que o tal espertíssimo juntou alhos com bugalhos, ou seja, convidou amigos secretos mesmo, que não se conheciam e nem tinham muito a ver um com o outro. Eram de várias tribos, com talvez alguma coisa em comum para terem sido colocados em um mesmo grupo. Seria um exercício de socialização virtual, uma experiência onde ninguém conhece ninguém mas todos sairiam dela como se fossem amigos de infância. Sei.


Assim foi feita essa monstra besteira, e Fu Lana entrou já com um pé de fora. Daí, um engraçadinho resolveu quebrar o gelo e animar a festa com uma piadinha, que começava com um cara acordando sem saber onde estava e que começava a perceber quem era aos poucos, no desenrolar do texto. Verificava que estava em uma cadeira de rodas e, que azar, era negro, tinha um namorado, torcia para o time tal, era vegetariano, aidético e foi assim levando sustos, ando pela profissão (era professor) até descobrir a desgraça maior, que pertencia ao Partido dos Trabalhadores. Uau! No final da piadinha inocente, na qual tinha ofendido mais da metade da população viva, terminava com aquele auxuakhdasdxuaaualdsa, que parece quer dizer: estou gargalhando.


Vocês podem imaginar a nossa politicamente correta Fu Lana em um silêncio petrificado na frente do computador. Logo ela, que um dia entre amigos, desconjurou um cidadão mediano por contar uma piada que desmerecia as loiras e os portugueses. Na mesma piada.


O humor beirou ao desespero e o AS começou a fervilhar. Outros recados eram postados em resposta à indelicadeza do tema proposto pelo animadinho. E descambou geral. As críticas mais leves eram: o que tu tens contra os vegetarianos? Mas era só uma piada, gente! E a bola de neve foi engrossando.


Explica-mas-não-justifica daqui e dali, o grupo só não rachou porque o moderador (sempre tem um) apaziguou a galera e manteve a proposta de integração natalina. Foi a deixa para controlar os ânimos que no fim de ano sempre são um teste para os cardíacos.


Conversa mole vai e vem, surgiu outro recadinho questionando essa história de Natal, proposta comercial nada a ver. Outros na mesma trilha perguntavam se o garoto, aquele Menino Deus, tinha nascido mesmo no dia 25 de dezembro, ou essa seria mais ou menos como aquela história de que o homem pisou na Lua: um engodo histórico difundido como um o à frente para a Humanidade. Como assim? O homem pisou na Lua sim, senhor, nós vimos na TV!


Cada um colocava suas questões primordiais e as defendiam até os dentes ficarem cerrados. Já tinham falado em política, religião, futebol. Só se esperava que não houvesse combinação de troca de tiros. Fu Lana não entendia o que faria aquelas pessoas trocarem presentes dali a um mês.


Um ambientalista entusiasmado com o movimento "Eu resolvi me importar" pregou libelos de atividade do tipo: se você não tem lixeira separada não é meu amigo. Obviamente, teve quem achasse isso irrelevante e desnecessário. Ser seu amigo ou ter as lixeiras separadas. Páginas e páginas foram adicionadas com discussões idiotas, ionais, retrógradas e, a cada vez, o moderador entrava para alertar: é Natal, pessoal, take it easy.


Fu Lana já itia: sempre quis conferir a nova baixaria que rolava no AS. Parecia impossível que aqueles assuntos tivessem mesmo um nível tão baixo. De onde saiu essa gente? Ela não se adaptaria aos conhecidos virtuais. Era muito estranho ver algumas pessoas querendo elogiar e escrever coisas suaves e positivas e, ao invés disso, arem uma mensagem brega e melosa. E os beligerantes, dá-lhe pau. Desligava o computador, ofendida, e ao ligá-lo no dia seguinte, recebia aquela dose de adrenalina no sangue e saía teclando vigorosos discursos sobre a morte da bezerra.


Ao ler as últimas frases do dia postadas (do tipo: se o amor é cego, o negócio é apalpar), percebeu que estava perdendo um precioso tempo de vida. Experiência mais absurda: ser convidada para participar de um grupo de conhecidos secretos, que na verdade formavam apenas um grupo de polemistas. Abandonou a prática nefasta, e assim fizeram outros, até que o moderador encerrou a experiência com a seguinte conclusão, mais do que esperada: o mundo não está preparado para a diversidade e para a tolerância. E ainda é mais difícil no Natal. 

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