Von e o Esso

Além de previdente, Von, de quem se falou aqui na semana ada, era também metódico e prestativo. Levou para o jornal a rotina do …

Além de previdente, Von, de quem se falou aqui na semana ada, era também metódico e prestativo. Levou para o jornal a rotina do burocrata profissional que verdadeiramente era e só deixou de redigir os "despachos" das agências internacionais em duas vias quando, por óbvia contenção de despesas, faltou papel carbono.


Ele próprio se impôs um "horário de expediente", que aos sábados contemplava apenas meio-turno, até 11 e meia da manhã. Naquele tempo a chamada "semana inglesa" não começava ao entardecer da sexta-feira, com o primeiro chope tremeluzindo na mesa do bar, à semelhança do "sabbath" judaico.


Em um desses sábados, mesa limpinha, papéis, caneta, vidro de cola, tudo arranjadinho com requintes dentro das gavetas, quando o Von levantou-se para sair, o Aloysio Schneider teve a brilhante idéia de lhe pedir um favor. O "Alemão", editor internacional do Diário de Notícias, era também o redator do Repórter Esso, cujas edições, captadas da United Press International pelo telégrafo Morse e datilografadas em meia lauda tamanho ofício, eram levadas em mão à Rádio Farroupilha.


Enquanto o Diário de Notícias ficava na Rua da Praia, onde hoje é a Galeria Di Primio Beck e a Farroupilha (PRH.2) tinha seu estúdio na Duque de Caxias, esquina da Borges de Medeiros, bem no alto do "Viaduto Otávio Rocha", onde hoje é o edifício Don Felippe, um contínuo subia correndo a Ladeira e o "Esso" era posto na cabine, à disposição do Lauro Haggemann, para ser lido com a entonação de quem que parecia ter o fato diante dos olhos..


A coisa se complicou mais tarde, quando o Diário e a Farroupilha foram incendiados, nas desordens que marcaram o suicídio de Getúlio. O Diário, depois de andanças pela Rua Siqueira Campos, acabou transferido para a Avenida São Pedro, quase esquina Farrapos, sede de "a Hora", comprada pelos Diários Associados. A Farroupilha foi parar nos últimos andares da Galeria do Rosário e ganhou uma "Agência Central", na esquina da Borges com a Rua da Praia, onde instalou-se o Departamento de Notícias e era lido o "Esso".


Aparato demasiado para a improvisação que caracterizava os Associados, a geografia dispersada exigia verdadeiras acrobacias. Schneider redigia o Esso, entregava ao primeiro dos poucos motoristas da redação que estivesse disponível e disposto, o "jipe" a 60 por hora vinha ao centro e entregava a encomenda na Agência Central.


Tudo isso era desgastante. Havia uma espera nervosa, até que telefonassem da Farroupilha, comunicando: "O Esso chegou!". Pois naquele sábado, o Schneider quis, pelo menos uma vez na vida, poupar seu velho coração de tanta angústia. Ao ver o Von prestes a sair, perguntou-lhe:


"Vais para o centro, agora?"


"Sim", respondeu o Von. "Tenho que ar no Mercado, para comprar frutas que a patroa me encomendou."
"Faz um favor. Entrega o Esso na Agência Central. Dá tempo. No máximo meio-dia e quinze tu estás lá, não é?"


"Pode deixar comigo."


Tranqüilo, Schneider foi cuidar do resto de seus afazeres. Meio-dia e quinze, o telefone soou na sua mesa. Era da Agência Central:
"O Esso ainda não chegou?"
" Mandei em mãos pelo Von. Deve estar chegando. Não se preocupem."


Meio-dia e trinta, de novo o telefone da Agência:
"O Esso não chegou. Falta só meia-hora?"
"Acalmem-se. Vai chegar" - Schneider tentando tranqülizar, mas já com o coração aos pulos. E mais não conseguiu dizer quando os telefonemas da Central começaram a pipocar, de cinco em cinco minutos, até cessarem à uma em ponto, horário do Esso.


Na segunda-feira, quando Schneider chegou na redação, já encontrou o Von tirando das gavetas para arrumar com requinte, em cima da mesa impecável, papéis, caneta, vidro de cola e até lápis e borracha que ninguém sabia para que ele queria. Não precisou sequer perguntar. Von foi logo contando:


"Nem te conto, Alemão. Desembarquei do ônibus, e estava atravessando a Praça Quinze, quando me deu uma súbita caganeira. Sorte minha que tinha sanitário desocupado. Mal deu tempo de arriar as calças e me sentar."


Von fez uma pausa e. encarando Schneider com extrema severidade, arrematou:


"A gente tinha que fazer uma campanha séria contra para a Prefeitura. Eles não botam  papel higiênico naqueles sanitários."

Autor

Jayme Copstein é jornalista, com atividade em jornal e rádio desde 1943,com agens pelos principais veículos de Porto Alegre. Trabalhou 22 anos no Grupo RBS como apresentador de programas e comentarista de opinião da Rádio Gaúcha, e atualmente é colunista do jornal O Sul e apresentador do programa 'Paredão', na Rádio Pampa. Detentor de vários prêmios, entre eles, Medalha de Prata (2º lugar) no Festival Internacional do Rádio de Nova York (1995), em 1997 publicou "Notas Curiosas da Espécie Humana" (AGE). Seu livro mais recente é "A Ópera dos vivos", editado em janeiro de 2008.

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