Viver é um samba-enredo
Não se perca mais de mim, não se esqueça de mim, não desapareça, não saia do meu lado, segure o pierrot molhado e vamos …
Não se perca mais de mim, não se esqueça de mim, não desapareça, não saia do meu lado, segure o pierrot molhado e vamos embolar ladeira abaixo. É que já estou em ritmo de carnaval, esquentando os tamborins e ensaiando para não atravessar na avenida e prejudicar o maior show da Terra. No meio de leitores tão sinceros, devo itir minhas fraquezas. Ao procurar no baú das recordações, onde repousa parte do meu ado, não encontrei nenhuma das fantasias que usei na adolescência, período em que o carnaval servia de desculpa para as "moçoilas" paquerar, namorar ou ficar sem a vigilância dos pais. Como relatei acima utilizando trechos da música do Caetano, não posso mais deixar a alegria e a ingenuidade me abandonarem.
No dia em que, na maior distração, joguei no lixo as fantasias dos carnavais ados, não imaginava que estava mandando embora, também, a magia de me encantar com as marchinhas antigas tão lindas, com o amor do pierrot e da colombina e com mais de mil palhaços no salão. Agora, despida de qualquer resquício de folia, não adianta dizer que a saudade é mal de amor, dor que dói demais e nem levantar a bandeira branca e pedir paz. A guerra foi declarada em pleno carnaval simplesmente porque nos meus "guardados" não ficou um confete, pedacinho colorido de saudade, uma serpentina, que a gente usava para tentar enlaçar os carnavalescos e nem mesmo lembro o nome do pierrot que todo ano pulava comigo.
Não restou uma purpurina e nem uma lantejoula para enfeitar as histórias dos meus carnavais adolescentes. Mas, eles existiram, fazendo muito trenzinho no salão, cantando muito "mais que calor, oh, oh, oh" e simplesmente em puro momento de diversão. As recordações materiais podem ter ido embora em alguma faxina raivosa que fiz no meu ado, mas as lembranças lúdicas permanecem comigo. Confesso, eu era um pequenino grão de areia, uma eterna sonhadora e, hoje, ainda ao olhar o céu e ver uma estrela, continuo imaginando coisas de amor. Isso pode ser um sinal de que não perdi, completamente, a magia e o encantamento com a pureza da ingenuidade, do pueril, do infantil, da festa sem malícia.
Se encontrar em qualquer caminho que seguir, mesmo não sendo dias de carnaval, um Arlequim chorando pelo amor da Colombina, vou lembrar que ele deve insistir com a pretendida e lembrá-la do romance que viveram no carnaval anterior. Quem sabe dá certo? Se em qualquer noite, andando pelas ruas e esquinas da minha Porto Alegre que eu amo tanto (ok, ainda estou em recuperação e não vou sair caminhando sozinha por aí), uma estrela d"alva despontar e iluminar o céu, deixando a lua tonta com tamanho esplendor, vou desacelerar. Sentar em algum banco de praça e ouvir as pastorinhas cantando na rua lindos versos de amor e não duvido que até, emocionada, chore convulsivamente.
Tudo indica que ainda tenho solução, que não arruinei definitivamente meus laços com o pretérito e nem rompi relações com a ingenuidade, único sentimento que ainda nos permite o envolvimento e o encantamento com coisas simples e rotineiras, como um desabrochar de uma flor, um pôr-do-sol que sempre se repete, um sorriso escrachado de uma criança e o gargalhar contido de um velho. Posso não encontrar as fantasias de havaianas, melindrosas, ciganas, fantasmas que me vestiam na adolescência no baú das recordações. Nada, porém, que me faça desistir de sonhar, de acreditar, de cantar à toa, mesmo que a platéia na arquibancada da Sapucaí não esteja nem aí para o meu enredo.
Simplesmente viver já é motivo para um bom samba, um ótimo carnaval e muita folia momesca. Por isso, vou atravessar a avenida cheia de luzes carregando a bandeira branca da paz, vou parar em frente à Comissão de Frente e fazer aqueles os que chegam a embaralhar os olhos de quem vê, vou acompanhar o recuo da bateria e depois, ao final, sem nenhuma exaustão, posso até subir para a arquibancada e assistir à agem de outras escolas. Mesmo que seja tudo imaginação. Porque quem tem um ado pode se permitir tudo. Quem aposta no futuro também. E esse é o meu carnaval.