Vive la difference
Na entrada, duas pilhas de jornais de um metro e meio de altura apresentavam uma cor amarelada. Ela, um dia, deveria ler e recortar …
Na entrada, duas pilhas de jornais de um metro e meio de altura apresentavam uma cor amarelada. Ela, um dia, deveria ler e recortar o que havia de interessante. Outras duas pilhas no lado oposto da pequena sala aguardavam o mesmo destino, seguidas de outras pilhas menores, ainda organizadas por cadernos de cultura e de fim de semana, no outro cômodo. Sobre a mesa, papéis, notas, cds, convites para lançamentos e concertos, dvds e livros. Muitos livros. Nas prateleiras, até o teto, mais cds, pilhas deles, alguns novos, importados, outras cópias caseiras bem produzidas, com cadernos e capas a cores. Bossa nova, jazz, blues, rock, clássicos. Todos os sons e palavras pela casa. Um sofá confortável afundava a preguiça e a vontade de ficar ali, fitando as paredes e os objetos que cantavam e contavam histórias uns para os outros. As revistas completavam a frívola maldição do consumo de conteúdos temporários. Essa é Si Crana. Colecionadora incansável, perseguidora de curiosidades nos sebos na cidade, mesmo aos sábados mormacentos. Viradora de lojas na busca de cds raros, procura e sempre acha barbadas imperdíveis no garimpo da música e da literatura.
Fu Lana e Si Crana são amigas há muito tempo. Água e vinho (água é Fu, por certo), iram-se pelas qualidades opostas. Enquanto Si Crana é esperta e culta, detesta mover um músculo tais as dores que sente só ao pensar em exercitar-se. Não vê problemas, no entanto, em virar a noite revendo filmes que já havia visto 30 ou 40 vezes, lendo e relendo o que cai nas mãos em sua pequena e solitária morada. Os livros estão até no teto, onde mandou construir um alçapão. Um dia, um pássaro mudou-se para lá. Sem condições físicas e psicológicas de mandá-lo embora, chamou Fu Lana que por sua vez chamou seu fiel escudeiro. Eles tiraram da casa o único companheiro de Si Crana, que preferia, sempre, morar sozinha. Com seus livros, discos, jornais e dvds. Si Crana sabe o nome dos melhores filmes da história do cinema, e, de cor, seus diretores, atores e roteiros. Lembra cenas com detalhes e Fu Lana fica sonhando em reencarnar um tipo assim.
A diferença entre as duas é percebida quando, entusiasta, Fu entra pela sala, que tem a porta sempre entreaberta, tal como em cidades do interior, e conta em um só fôlego sobre um protótipo divulgado pela Microsoft de um objeto chamado Playanywhere. "Só precisamos de uma mesa limpa e?", olhou em volta, comentando: play anywhere, menos aqui. O tal equipamento permite que, sobre uma superfície plana, uma luz seja projetada na diagonal e nesse facho, surge um jogo de xadrez, ou um fliperama virtual que interage com o usuário a ponto de perceber a presença das mãos e há uma ação virtual onde as peças ilusórias são movidas pelas mãos, ou a bola é lançada e rebatida pelo usuário sem a matéria, só a ilusão. Filmes am sobre uma folha de papel, que, colocada sobre a mesa, pode ser movida e. mesmo assim, levará junto as imagens. As mãos coordenam o que se vê, ampliam ou diminuem partes de um mapa ou manipulam páginas digitais de um jornal virtual. Fu Lana estava ofegante e excitada com a novidade, porém Si Crana apenas levantou as sobrancelhas e espiou do fundo do sofá, lembrando quantas vezes os livros e a palavra impressa estiveram ameaçados pela tecnologia e quantas vezes essa ameaça foi para o espaço. Estava, na verdade, tranqüilizando seus queridos objetos de estimação, que ameaçavam soterrar aquela intrusa que levava competidores virtuais à humilde morada.
A diferença entre as duas fica também transparente pelas aquisições na Feira do Livro de Porto Alegre. Si Crana trouxe Fernando Pessoa, em uma edição Alfaguara, uma editora que mantém em seus livros uma estrutura gráfica semelhante. Quando fui outro tem páginas escuras de quando em quando, com poemas de Pessoa em letras cinza, corpo 36. Uma quebra do ritmo para manter a atenção. Fu Lana comprou o Filete Porteño, da Maizal Ediciones. Um livro que conta a história dos fileteadores e sua técnica que consistia em cobrir as tábuas das carroças com arabescos e alegorias, identificando o tipo de negócio, orgulhando seu dono. Quando as carroças foram banidas das ruas, os filetes aram às carrocerias dos caminhões. A pincelada era a leitura preferida de Fu.
Si Crana voltou à feira e comprou Nelson Motta, Ao som do mar e à luz do céu profundo. Um livro da Suma de Letras, edição despojada e carioca, com uma abertura em um clipping pop de desenhos em alto-contraste, lembrando a juventude transviada, do iê-iê-iê. Tudo muito lindo. Trouxe também Tom Wolfe, Radical chique e o novo jornalismo, da Companhia das Letras. Imbatível, essa Si Crana.
Foi quando Fu Lana adquiriu O Catálogo de clichês, da Atelier Editorial, uma obra fac-similar da empresa D. Salles Monteiro, do início do século XX, reunindo vinhetas, ilustrações e símbolos utilizados na época em que se encomendavam os desenhos fundidos em chumbo para decorar as publicações.
Em um duelo absolutamente pacífico, pois não havia como bater Si Crana na qualidade de suas escolhas, Fu Lana se comporta agora como um cachorro à beira da mesa para receber as migalhas. Está esperando sobrar a segunda leitura do Almanaque Anos 70, de Ana Maria Bahiana (Ediouro) para poder degustar aquela diagramação desbundada, feita de recorte e colagem, bem ao estilo pop, hippie, louco, sonhador e tecno ao mesmo tempo. As meias brilhantes e listradas com as sandálias coloridas nos fazem ouvir a música e querer entrar no embalo. Esta foi também uma aquisição de Si Crana na Feira.
Nessa luta de páginas e lombadas, Fu Lana trouxe Terra Adentro, da Arquipélago Editorial, com a descrição de uma longa viagem a cavalo pelos pampas do sul, mas Si Crana ganhou longe com Viagem ao Redor do Meu Quarto, da Mercado Aberto, de Xavier de Maistre, com tradução de Armindo Trevisan.
Exaustas com suas aquisições, cada uma seguiu para seu lado. Fu Lana resolveu fazer uma caminhada em trote rápido para relaxar, sob as árvores do parque, a 30 graus. Lá, pode sempre lembrar Van Gogh nos braços levantados das copas, por vezes com folhas verdes, amareladas ou em um quadro fantasmagórico, cobrindo o caminho de pedras. Si Crana retornou ao seu abrigo e deliciou-se com a leitura sob o som clássico de suas caixas potentes, acompanhada de um cafezinho e um cigarro, com direito a muita solidão. Dois caminhos, duas agens.