Vale quanto sopesa

Do alto da minha falta de autoridade em assunto nenhum, eis-me:preparadaço para dar conta do que ninguém quer ler por estes dias amorfos. Preencher …



















Do alto da minha falta de autoridade em assunto nenhum, eis-me:
preparadaço para dar conta do que ninguém quer ler por estes dias amorfos. Preencher este espaço requer apenas um requisito comigo mesmo: deixá-lo mais vazio do que quando o recebi. Digo, a parte que me cabe do lúmen desta tela. Afinal, com tamanho conteúdo essencial ao redor, reconheço o desafio - é daqueles em que só a tangente nos livra. O que me obriga a ser menos claro do que estou
sendo. Sou? Ignoro. Bão, na ignorância me situo. Daí, seguinte.


O ser mais importante que existe no mundo é o ignorante. Sem ele, qualquer sistema de ensino desmorona. Com ele, todo conhecimento se justifica. O valor do ignorante é esse: não sabendo neca de nadicas, serve de base à uma sociedade construída através da supressão das lacunas, vá lá, intelectuais. Melhor moto perpétuo evolutivo nem imagino.


Por isso os bebês nascem analfabetos (pode soar bobagem - não minha, que sei dizer melhores, mas da natureza, que é infinitamente mais sabidona que este seu filho aqui) porém essa pode muito bem ser a salvaguarda primordial da espécie, a que protege a continuidade. Se nascêssemos sabendo, evoluir ia ser um parto.


Não importam os pais - quão inteligentes e letrados sejam. Cada bebê que chega vem para reforçar o pressuposto básico da linhagem ignara: se tudo lhe é alheio, será um aliado do sistema. Aquele berço, onde a humanidade incônscia - inventou essa palavra agora, Fraga? - balouça, é o da civilização. O que balbucia um bebê é um bulício que não causa reboliço no aparato que o espera. Se nem falar sabe, bem-vindo seja.


Assim que cresce, das duazuma: ou o ignorante vira promessa ou a mesa vira o ignorante.


Se tudo assimila, nada mais há a fazer. Nuns 10 anos está pronto para não mais aprender a aprender. Deixou de ser ignorante nato. Já sabe que sabe saber, e pior: já acha que sabe que sabe o que sabe. Aí, em plena imaturidade mental, amadurece precocemente. Vai e veste o impermeável que o impedirá de se encharcar no insabido. De se surpreender surpreendido. Nem uma gota do só-sei-que-nada-
sei o umedecerá. (Ih, Fraga, filosofia num parágrafo inconcluso?)


Mas, mas: esperança hay. Se o ignorante aperfeiçoa a sua própria ignorância, ele se torna peculiarmente mais útil (sem o perdão das más palavra antes e depois dos parênteses) à sociedade. Na vastidão do seu não-saber, instintivamente preservado por uma resistência inculta, ele busca mais. Quer dizer, em vez de mais do mesmo (o sabido pré-sabível) ele procura por menos do mesmo (do insabível
ao indizível, tudo, aliás, intransferível!). Ao se manter nesse limiar, o ignorante pode aprender o que quiser. Pode continuar aprendiz.


Esse é o ignorante que interessa, o que enriquece o sistema, o que mexe com a estrutura. Ele não está atrás da nota que o envaidece, do diploma arranjadamente qualificador, da aprovação previamente acordada entre mestres e discípulos. Da faixa de chegada que corre ao encontro do corredor. Esse é o ignorante não ideal para um sistema que idealiza demais.


Não, não puxo brasa para a minha sardinha. Minha ignorância mal deu para chegar ao fim desta tese, que tirei do nariz aos 8 anos.

Defignições


Conflito de gerações - Elo de ligação entre pais e filhos, avós e netos,
tios e sobrinhos.


Fracasso - Oportunidade irrestrita para conformados se realizarem.


Idéia fixa - Aflição mental decorrente da falta de outras aflições mentais.


Minifúndio - Porção imaginária de terra, com produção agrícola inimaginável.


Modos - Isso que só chama atenção quando alguém não tem.


Priapismo - Doença masculina a cujos sintomas as mulheres são mais sensíveis.


Racista - A única raça realmente inferior.

Suicídio - Acordo de extrema cumplicidade entre o assassino e a vítima.


Televisão - O maior veículo de comunicação de massa, exceto a cinzenta.


Morte - A indisposição que revoga todas as disposições em contrário.
(Edgar Vasques)

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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