Se quiser sobreviver, cuidado 283x3t
ao olhar por cima do ombro".
Provérbio irlandês.
Sempre recordo das manhãs geladas dos invernos de Porto Alegre. As ruas amanheciam desertas - apenas um ou outro morador solitário ava rente às casas, com a manta de lã enrolada no pescoço. Na cozinha, o fogão a lenha estava aceso desde cedo e aquecia toda a casa. Pela janela embaçada da sala, eu espiava o pátio encharcado, e nossa parreira nua que parecia triste e sem vida. Era ela que nos dava sombra no calor das tardes de verão, com os cachos de uvas douradas ao alcance das mãos.
***
Agora, é outro inverno e outra cidade. Me posto junto a uma janela embaçada, à procura de adas paisagens. Não se vê casas de porta-e-janela nem pátios como os de antes, somente edifícios altos e espelhados que refletem o céu cor-de-chumbo.
Teimosamente, volto ao bairro onde ei a infância e mocidade,
apesar do poeta que nos diz que "o ado nunca é como lembramos". Logo ao chegar, encontro um morador dos antigos, contando que botaram abaixo o sobrado herdado de seus pais. o a o, subimos a ladeira da Vasco da Gama, toda coberta de asfalto até chegar ao novo viaduto que a por debaixo da Ramiro Barcelos. Não se ouve o silêncio - os carros buzinam e caminhões soltam fumaça, onde o que se ouvia eram apenas bentevís e o tilintar de garrafas na carrocinha de leiteiro Arnaldo.
Ainda assim, busco pelos fragmentos perdidos. Como a voz da mãe cantarolando na cozinha ou o sorriso do pai que entra em casa e despenteia meu cabelo.
Tento lembrar como era a cesta de vime com uvas douradas que a mãe servia de sobremesa aos domingos. Ela comentava que estava fazendo como o avô Patrício. Que colhia as uvas mais maduras e as colocava em um balde com água fresca da cacimba. Então, sentava à sombra do cinamomo e as comia uma a uma. Fazia longas pausas, ava a mão no tronco rugoso da velha árvore e falando baixinho:
"É bom comer uma de cada vez,
assim, duram mais".
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