Um polêmico encontro de três
Por Luan Pires

Sentei à mesa. Estava atrasada. Olhei minha irmã e nossa mãe me olhando com desaprovação. Minha irmã, como vocês sabem, é muito pontual. Anda pra cima e pra baixo com uma agenda cheia de anotações. Eu já falei pra ela: tablet, Google Keep, Google Agenda... por que insiste nesse emaranhado de anotações pra se organizar? Ela me respondeu como se nem estivesse olhando pra mim que pessoas são mais que caixinhas: são uma rede emaranhada. Só ela consegue montar isso manualmente de forma que faça sentido. Eu ia apelar, mas ela me lançou aquele olhar complacente de quem entende mais de mim porque de alguma forma já foi como eu. Eu desisti.
É raro nos encontrarmos para conversar. Na verdade, mais que conversar, minha mãe diz que é um alinhamento de interesses. Quem olha de fora pensa que não faço parte dessa família. Minha mãe tem o tom doce e as palavras afiadas de uma faca. Prática, racional e direta ao ponto. Ela costuma dizer quando minha irmã e eu brigamos que isso é besteira porque não somos a interpretação que eles fazem de vocês. Somos o que somos. Eu me calo na hora com a perna inquieta embaixo da mesa. Não sou do tipo de ficar parada. Minha irmã ouve e revira os olhos como se pra ela isso fosse simples e claro.
O papo começou com uma briga entre minha irmã e eu. Eu reclamei de ser o alvo das críticas de todos os humanos. A vida é muito difícil. Viver é chato. Viver é só existir um dia após o outro. Minha irmã questionava: esperava uma série de teorias sobre o que é viver? Todo mundo sabe o que é viver! É existir. Ponto final. Esses humanos que ficam criando discursos para se motivar a continuar existindo são adoravelmente bobos.
Esse papo dela me irrita. Temos a mesma idade, somos gêmeas, temos o mesmo tempo de trabalho, mas ela age como se tudo fosse como deveria ser. Eu a repreendi. Não são discursos. São propósitos, são filosofias, são maneiras de justificar a existência deles e da própria mamãe antes da minha irmã chegar e acabar com tudo.
Ela me respondeu que ela não acabava com tudo. E depois emendou: ou será que eu acabo? E me deu uma piscadinha. Ela fala isso porque sabe que grande parte do interesse nela através das mitologias criadas pelos humanos está pautado no mistério que ela representa. Falei num impulso: você é só o fim de mim. Sozinha não tem importância. Ela ficou tão braba que percebi ela adentrar no meu território como se fosse me aniquilar de dentro pra fora.
Minha mãe interveio. Ela disse com aquele olhar brilhante que a nossa importância está intrínseca uma à outra e que a gente discutir quem é mais importante é o mesmo que debater o que é o mal e o que é o bem. É contextual. Um depende do outro. E sorriu como se tivesse falado algo bom. Mamãe continuou dizendo que ela faz questão de ser chamada de mãe pela gente não porque ela é mais velha, afinal, ela não é. Mas, porque, a essência dela permeia e conecta a minha existência e a da minha irmã. E aí emendou um discurso como sempre faz nesses momentos.
Disse que ela é uma balança e como tal se pauta mais pelo lado racional. O que não anula o brilhar que só ela provoca. Que ela, como aprendizado que deveríamos ter ao vê-la falar, não se deixa ser definida pelos humanos. Embora, ela faça um parênteses com a mão apontando para a mente, que alguns chegaram bem perto da realidade ao defini-la.
Ela recomeçou dizendo que ela sabe quem ela é: uma agulha com uma linha vermelha que conecta os humanos, mas o que eles entendem disso e o quanto eles querem se prender a essa linha, dar nomes a ela ou dar exemplos do que ela deveria ser, nada disso consegue a influenciar. Ela é a cola que me dá propósito, que dá senso de realidade para a minha irmã e que como marionete enrola o novelo. Esse emaranhado que ela provoca, continuou, gera alguns nós na linha, que se tranformam em casamentos, em amizades, em ódio, em parceria, em sexo, em coletividade. Outros não. Ela não é responsável pelo o que os humanos sentem uns pelos outros ou fazem com esses emaranhados. Ela não tem roteiro e não prediz significados. Ela só gera o emaranhado e deixa eles criarem suas narrativas.
Minha irmã e eu ficamos quietas. Então, com um gesto que indicava que ela estava terminando o encontro de hoje, mamãe falou: uma moeda é composta de dois lados, podemos dizer que um é a Vida e outro é a Morte. A espessura da moeda sou eu. Posso ser nada, posso ser tudo. Depende deles saberem me usar como base pra vocês.
Ela levantou da sala e nos deixou sozinhos. Minha irmã revirou os olhos e saiu.
Eu suspirei. Não entendi porcaria nenhuma, como sempre.