Um milhão de amigos

Na volta do jornal, sempre faço o pequeno trajeto do final da lotação até a minha casa sozinha e o tempo parece longo demais …

Na volta do jornal, sempre faço o pequeno trajeto do final da lotação até a minha casa sozinha e o tempo parece longo demais porque minha filha Gabriela me aguarda para os afazeres noturnos. Não que ela me pressione. Pelo contrário. Na sua estréia na pré-adolescência, quanto mais liberdade melhor, e todos nós já amos por essa fase, o.k.? Resta-me compreender. A viagem de volta para casa serve para colocar os pensamentos em ordem, se é que isso é possível, refazer o dia mentalmente, começar a programar a rotina futura e, quem sabe, tentar observar a beleza das ruas de Porto Alegre, onde jamais arei.


Meu roteiro na terça-feira à noite não seria diferente. Ao avistar a lotação com o pisca-alerta no fim da linha corri para não perder a kombi. Para minha surpresa, no primeiro banco, atrapalhado com papéis e tentando enfiar tudo dentro de uma pasta, sentava um amigo antigo, daqueles que a gente gosta muito e muito, mas que, às vezes, não diz ou perde o contato. De imediato, sentei ao seu lado e me preparei para uma rápida conversa de jornalistas. O que seria natural. Jornalista quando se junta com jornalista não tem jeito. Dificilmente consegue mudar o lead, virar ou derrubar a pauta.


Na primeira sinaleira, ele lembra que precisava buscar a filha e estava sem carro e aciona o celular. Daí, a conversa carece de explicação, como diria a música. Ex: casais amigos em comum (se é que compreenderam). Começamos a falar nos filhos e nestas coisas de quem impõe mais autoridade (ex: marido ou ex mulher), de como eles crescem e o que fazer e talicoisa e o tempo ou. Ou melhor, cheguei na esquina da minha casa. Sem falar sobre jornalismo, mesmo com um ensaio inicial nas primeiras quadras do caminho, mal deu tempo de perguntar sobre os familiares e nem mesmo de dizer o quanto eu gosto dele.


O encontro parecia um aviso divino para reverter um dia que havia começado de forma muito azeda, com momentos recheados com um gosto estranho de tristeza e melancolia, que eu debito à saída do inferno astral e pequenas desilusões do ser humano. Mas sem um motivo aparente. Aqueles dias em que a gente acorda e pensa o que é que eu estou fazendo aqui neste planeta? Recordei os minutos mais angustiantes do dia e lembrei que em todos tive o carinho de amigos. A ternura da colega barriguda na redação carregando Isadora, o olhar meigo compartilhado da chefe de reportagem, o lanche light que a amiga ao lado dividiu comigo.


Detalhes tão pequenos de todos que fizeram a diferença e são coisas tão difíceis de esquecer. À tarde, por exemplo, aguardando uma pauta no Palácio, conversando com um colega antigo de Zero Hora lembramos que o Hamilton Almeida, grande amigo e companheiro e tudo de bom de colega, lançava um livro em São Paulo, e pensei em mandar-lhe um email. No final do expediente (que termo burocrático), já nem me reconhecia de tanto que gargalhava. O reencontro com o amigo que a separação fez desaparecer me deixou também animada. E pensar que o dia amanhecera de forma tão ríspida.


Fã do Orkut que ando (pode?), lá pelas 23h, já que o sono nunca me vence antes das 3h da madruga, fui olhar meus scraps e entrar em duas comunidades que acho demais. Novas surpresas. Na página inicial do Orkut, uma amiga também antiga (no sentido de tempo) havia me adicionado e eu aceitei e de quebra, inaugurei seus depoimentos de uma forma bem jornalística (ela também é jornalista). eando nos tópicos de outra comunidade, vi muitos elogios para o 32º Congresso dos Jornalistas, e me enchi de carinho porque o Jorge, meu grande e insuperável amigo, foi um dos organizadores. E, transmissão de pensamento, tinha dois scraps de pessoas que não vejo há tempo, mas são amizades que o silêncio não apaga.


O relógio marcava 4h quando o sono bateu no meu quarto. Deitei a cabeça no travesseiro e tive uma noite marcada por imagens de contos de fadas, aqueles cenários maravilhosos com varinhas de condão, visitas de anjos da guarda, conversas de crianças, lembranças de momentos lindos, sonhos que vamos ter. Como todo dia nasce novo amanhecer. E as manhãs serão sempre belas para quem tem amigos. E quem tem um amigo verdadeiro, tem um tesouro. Quem tem muitos amigos, é milionário. Parece brega. Que nada. Eu quero mesmo continuar com meus amigos.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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