Trocando em miúdos

Nem todos os relacionamentos amorosos foram escritos para sobreviver na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando um ao outro e …

Nem todos os relacionamentos amorosos foram escritos para sobreviver na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando um ao outro e respeitando até que a morte os separe. Para manter essa promessa matrimonial, durante muitos anos, os casamentos pareciam duradouros. Nem que com ele fossem exterminadas características próprias do crescimento do ser humano, como liberdade, individualidade e dignidade; eliminadas antigas amizades e enterradas expectativas de sonhos profissionais. E quantas vezes, em nome de uma moral hipócrita, casamento virou sinônimo de rotina?


Nas últimas semanas, assolada por notícias de casos amorosos desfeitos de amigos que quero muito, fiquei pensando que sair de um relacionamento, mesmo depois de haver ado pelas inúmeras fases de depressão que um fato desses impõe, é uma grande vitória. Não é preciso falar dos pedaços de cacos que a gente juntou no caminho, das sessões no psiquiatra, da vontade de cortar os pulsos ou da mesma faixa de CD tocando. Mas também concluí que alguns ensinamentos devem ser colocados no currículo para o caso de não se cometer os mesmos erros, se um futuro encontro ocorrer.


Uma cena do filme "Harry & Sally: feitos um para o outro", em que o futuro casal, montando o seu lar doce lar, discute na frente dos amigos protagonistas que os apresentaram e que depois ficarão juntos, a colocação dos móveis é triste. Se o tema não fosse a dor humana, seria hilária. O amigo, completamente arrasado porque recém havia encontrado a sua ex, desabafa e diz que aquela mesa horrível de vidro, motivo inicial do desentendimento, não era nada. Que eles deveriam preparar-se e colocar etiquetas com nomes em tudo: livros, CDs, pratos, quadros e tudo o mais. O método pularia alguns desgastes numa separação.


Com seu ego pisoteado no chão, ao encontrar "olhos nos olhos a sua ex refeita", Harry define perfeitamente a dor do fim de um relacionamento. Expressa, principalmente, na mesquinharia da divisão das coisas, quando o ser humano deixa a maturidade adormecida. Ele argumenta com os amigos que aquela discussão é algo totalmente inútil e irrelevante, uma vez que na hora da separação, eles estarão é numa briga feroz para ver quem fica com a mesa horrível de vidro. No início, tudo é tão maravilhoso, ninguém reclama do arroz papa, do ronco do outro, da calcinha lavada pendurada no banheiro e nem da tábua do vaso sempre levantada.


Coincidência, os casais de amigos mais próximos em processo de separação am exatamente por essa fase cruel de divisão. Depois de anos de vivência, tudo se misturou, ninguém sabe direito quem juntou mais dinheiro para comprar aquele maldito aparelho de DVD. Coincidência ou não, o casal de amigos que, na época, foi ao cinema comigo e meu ex, assim como nós, está separado. Trocando em miúdos, como dizem com maestria na música, Francis Hime e Chico Buarque, a divisão das coisas "aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer? mas devo dizer que não vou lhe dar o enorme prazer de me ver chorar?".


O que dizer aos meus amigos? Ouçam um bom conselho, que eu lhes dou de graça, é inútil tentar qualquer coisa tipo tragédia grega, que a dor não a. Pelo menos assim num truque de mágica. E, mesmo que a dor atravesse a porta, ficam cicatrizes. "As sobras de tudo que chamam lar. As sombras de tudo que fomos nós. As marcas de amor nos nossos lençóis. As nossas melhores lembranças". Se possível, como diz a música "Trocando em miúdos": leve a carteira de identidade, uma saideira, saudade, e a impressão que já vai tarde". E, preparem-se, a paixão não tem nada a declarar, ela pode chegar a qualquer momento, é um louco desejo que não dá para segurar.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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