Tempos Niilistas
De tempos em tempos, perdemos as esperanças, de modo geral. Deixamos de acreditar nos partidos políticos, nas grandes propostas sociais. São os interesses de …
De tempos em tempos, perdemos as esperanças, de modo geral. Deixamos de acreditar nos partidos políticos, nas grandes propostas sociais. São os interesses de muitos que detonam nossos sonhos quando eles estão a caminho.
Vivemos, hoje, em uma época assim. A ironia e a descrença fazem com que não acreditemos.
Fu Lana andava cabisbaixa, pensando na falta de opções. Tocava a vida por impulsos, produzindo o melhor que podia. Foi fazer acupuntura, contrariando a si mesma, resistente à idéia de profanar o sagrado corpo feito à imagem de Deus, herança dos colégios de freiras, sempre elas.
Deitou sobre um colchão muito fofinho, em um ambiente confortador. Nada sofisticado feito um spa de luxo. Simplicidade, acima de tudo. Na segunda agulhada, seu braço estremeceu como se o dedinho tivesse entrado em contato com o cotovelo pela primeira vez. Eram da mesma pessoa, estavam esfuziantes. E Fu Lana suava, rejeitava aquela comunicação submissa de seus membros. Preferia manter o controle do cérebro, porém estavam conectados, já era tarde.
Foi a terceira agulha e a quarta, no outro braço, e todos já estavam
Duas derradeiras agulhas, uma em cada pé, e ela sentiu-se o próprio Cristo crucificado. Os pés entravam no diálogo e Fu Lana pensou em afastar as tesouras, os alfinetes ou alguns clipes de perto, pois estava imantada. Franzia o rosto quando o mestre resolveu dar voltinhas em cada agulha, como que levantando a voltagem da conversação.
Imaginem uma pessoa levitando contra a vontade própria. Fu Lana queria continuar desconecta de seu corpo, para continuar a massacrá-lo. Do jeito que as partes se reconheceram, se antes pareciam estranhas, agora seriam vizinhos inseparáveis. É como tentar manter seres queridos afastados. Uma experiência dolorosa demais.
Nisso, o querido terapeuta resolveu iniciar um papinho relaxante, falando da essência dos corpos e da filosofia oriental. Afirmou suavemente que Fu Lana apresentava uma vivência demasiadamente Yang, que deveria buscar o equilíbrio. E foi citando os fatos que cercam nossa heroína: o excesso de trabalho, a perda de um ente querido, o afastamento de pessoas maravilhosas, as crianças crescendo e as crises poderiam estar sendo demais para ela, e?
Quando percebeu, Fu Lana estava em lágrimas ao se dar conta daquela fieira de problemas. Sentia-se miseravelmente infeliz. Afinal, estava perdendo a essência vital, diariamente. Seu cabelos esbranquiçavam com mais velocidade, seu corpo estava esquecido. E só tinha ido procurar um tratamento para a epicondilite, pois queria desesperadamente voltar a jogar tênis. Saiu dali arrasada. Comprou um perfume italiano para se consolar. No outro dia, queria voltar às agulhas. Queria adquirir qualquer vício. Em tempos sem ideais, os desejos tomam a forma inesperada de uma busca interior. Uma crença, mesmo que temporária.