Teatro multitude

Imagine você em um palco, sentado em uma confortável poltrona, apreciando a platéia. Diferentes roupas e atitudes, diversas situações, todas acontecendo ao mesmo tempo. …

Imagine você em um palco, sentado em uma confortável poltrona, apreciando a platéia. Diferentes roupas e atitudes, diversas situações, todas acontecendo ao mesmo tempo. Imagine-se tentando prestar atenção aos assuntos tratados, alguns conceituais, outros políticos, outros meros desabafos ou bobagens a perder de vista. Imagine essa platéia composta de gente de diversos lugares que fala diversos idiomas. Você acaba de conhecer o teatro multitudinário. É quando há no palco uma multidão de pessoas, que representam um mundo onde não há mais fronteiras. Um mundo onde todo o conhecimento é somado. In loco. Onde todas as atitudes são representativas. Onde o pânico, a dor e o trauma estão presentes. Onde não há o amor romântico, nem a piedade, nem a solidariedade. Não há definições para atitudes adequadas a homens ou a mulheres, a crianças ou a idosos. Quando nos encontramos em busca de um dogma em que acreditar, algo que nos manteria unidos em apenas um planeta com diversos Estados. É a proposta unitária, afinal. No entanto, o mundo insiste em se esfacelar.


Assim é Big in Bombay, uma das peças que compõem o 14º  Festival Internacional Porto Alegre Em Cena, nesta primavera de 2007. A companhia é alemã: DorkyPark. A coreógrafa é argentina: Constanza Macras. Os artistas possuem diversas nacionalidades. São quase 20 pessoas que, com a troca de figurinos, e a conseqüente, instantânea e paralela mistura de papéis, tornam-se uma multidão. Assim é Big in Bombay.


Claro que existe a sinopse. Mas ela já está na Internet. Falemos do que foi visto, sem pesquisa anterior.


Imagine você, um europeu. Os países por lá parecem que implodem em um dia e ressurgem no outro em forma de vários povos. Você dorme Tchecoslováquia e acorda Eslovênia. Lá, o Curdistão é mais perto, ou o Iraque, ou a Índia. Os sons convivem, na realidade e no palco, assim como a violência e o terrorismo dividem o nosso cotidiano e nosso entretenimento. O homem atual é  um ser desmantelado e não obedece nem ao próprio comando. Porém é guiado pela obsessão de ser um sucesso. Copia papéis do ado, fórmulas que não funcionam mais.


Tudo isso, em um palco, concentrado em um par de horas, alucina o espectador. Alguns desavisados opinam contra: que o grupo estava na esquina de algum lugar e alguém perguntou: o que você sabe fazer? Dançar. E você? Cantar. E você? Sei enlouquecer. E assim surgiu aquela companhia de atores, cantores e bailarinos.


Fu Lana não compartilha dessa tese um tanto quanto irresponsável. Sabe como é difícil mover-se daquela forma desmantelada, decompondo os membros (braços e pernas, cada um para um lado) sem contar a cabeça e o quadril. São movimentos cientificamente provocados pelo domínio interno, mesmo em quedas ou na relação com outro corpo. É a expressão pelo movimento. E uma expressão de desmantelo.


São muitas as cenas que ficaram guardadas por quem assistiu Big in Bombay no Teatro do Sesi. O bailarino sem braços é uma delas. Faça mais um esforço. Imagine dois bailarinos, um homem e uma mulher. Em um pas de deux, geralmente, a mulher é servida pelos fortes braços do bailarino para executar vôos elegantes. Mas ele não tem braços. Então, para rodar com as pernas suavemente esticadas para o alto, ela deve escalar o sujeito de diversas formas. Como tornar isso romântico, ao que estamos acostumados tradicionalmente ao apreciar um pas de deux? É a ironia do mundo absolutamente cruel em que estamos vivendo. Onde a poesia resiste apenas no contraponto, na ausência de tudo que é suave, no absurdo entre o amor e o ridículo, entre o conhecido e o absolutamente incompreensível. Uma simples canção de amor, à qual o público reage com um suspiro de saudade, transforma-se em um barraco total, com garrafas sendo jogadas, com vizinhos reclamando, com pessoas da rua interferindo. Nenhuma poesia resiste a um barraco total. E o barraco é a poesia, hoje.


O bailarino acostumado à dança aeróbica, originado na geração saúde (que não aconteceu há tanto tempo assim), é um ser que fuma desesperadamente e quer também desesperadamente voltar ao ado. Ordena seus pés para que apontem, inutilmente. Ordena para que o abdômen contraia. Ele precisa parar a ação do tempo e,  impotente, se rende à realidade, e cai, cai literalmente nas diversas tentativas de realizar movimentos mais ousados. Enquanto isso, bailarinas desenvolvem verdadeiras pesquisas de movimentos, explorando todos os espaços do palco. Há, inclusive, uma grávida em cena. Uma mulher grávida que a a atuar como terrorista, facínora e assassino. O contraponto é extremo.


Os traumas falam em todos os idiomas. Uma tela, no alto, traz legendas para algumas situações de textos mais longos, ditos em alemão ou em inglês. Há uma banda inteira no palco, quase uma mini-orquestra. Os espaços são igualmente múltiplos e as cenas acontecem, muitas vezes, todo o tempo. Não há mais como perceber algo em separado. A visão multitudinária da peça nos deixa tontos. É preciso escolher. E a escolha é múltipla.


Algumas críticas realizadas pelo trabalho são mais fortes e importantes, como ao ratinho Mickey. Sempre o ratinho. Se Disney estivesse na platéia, ele diria: "Oh! My god, again. A culpa continua sendo minha". As críticas dirigem-se à EuroDisney. Os mouses e os Donalds são apresentados também em tomadas de cenas externas, quando as paredes se tornam telas. Nos vídeos, aparecem pessoas nas ruas, em algum lugar no Oriente, entre riquichás e bicicletas, e algumas mulheres vestem sari. É o Big, de big brother-celebridades, na terra de Bollywood, como dizia na sinopse.


Teatro multitudinário. Nunca as multidões estiveram tão na moda. E a dor doméstica de Fu Lana ou a ser superada pelo existencialismo radical que vem da Europa. As pessoas estão em pânico o tempo todo. Não viajam de avião, pois têm medo. Imaginam acidentes de trens, assaltos e ataques a qualquer momento, a ação de um louco ou serial killer. Sem falar na questão da religião e do poder. O mundo é uma bomba armada.


Isso é o que estava no palco. E não adianta não gostar da peça. Estamos dentro dela. Tão desengonçados quanto, tão destroçados e incompletos quanto. Quiçá tão talentosos quanto.

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