Soterrados em senhas

Por Flávio Dutra

O mundo digital nos transformou em refém das senhas. Por alto, calculo que dependo de mais de 20 senhas para terminais bancários, cartões de créditos, aplicativos diversos, redes sociais, sites de compras, etc, etc, etc. Haja memória para tudo isso. Conheço pessoas que anotam suas senhas em papéis, que guardam na carteira ou numa pasta no computador , o que é um convite para quebrar a segurança que a senha exige. Alguns se consideram mais espertos e criam a senha para ar as senhas e aí se complicam mais ainda.


Interessante as outras artimanhas que observo para criar e preservar senhas. Tem gente que escolhe a data do casamento e com o tempo acaba esquecendo as duas. Ocorre com os homens especialmente. Outros preferem a data de nascimento ou o nome de um dos filhos e criam um mal estar entre os rebentos preteridos, que se acham menos amados pelos seus progenitores, porque sabem como as senhas são importantes nas nossas vidas. Sei de moças que preferem usar como senhas os nomes dos seus pets ou, as mais sofisticadas, optam pela raça do bichinho, tipo Chowchow, Schnauzer ou Pinscher. Fácil de memorizar, dificil de digitar. Tem a turma dos apelidos familiares. No meu caso seria Cabeça, mas não tentem porque não uso tal senha,
Essas soluções vão na contramão do que recomendam os especialistas, porque significam vulnerabilidade. Vale o mesmo para aqueles que usam seqüências de números. O tempo que um hacker pode descobrir sua senha pode ser de alguns segundos ou milhões de anos. Senhas tradicionais com poucos caracteres seriam quebradas quase instantaneamente, enquanto aquelas com símbolos, letras e números dariam mais trabalho aos cybercriminosos. Se bem que também dificultam a memorização pelo usuário, ou seja, "se ficar o bicho pega, se correr o bicho come".


Para atenuar um pouco essa aflição e para mostrar que senhas não tem utilidade apenas nas modernidades do mundo digital, relembro a historia - verdadeira - ocorrida com um amigo.
Sucede que no final da primeira transa com uma nova parceira, naquele momento de relaxante aconchego, o prezado amigo foi surpreendido com uma exigência dela, cláusula pétrea para continuarem a relação, que, aliás, agora já dura 5 anos:

  • Preciso saber de duas ou três pessoas a quem possa telefonar caso te aconteça um piripaque aqui no motel. Sabe como é, a gente excedeu...

 

Faltou esclarecer que ele era bem mais velho do que ela e ao dizer que excederam estava implícito um elogio ao desempenho dele numa quadra da vida em que a natureza conspira e baixa, por assim dizer, as vontades e as expectativas. Mesmo assim o pedido dela era insólito, constrangedor para dizer o mínimo, e capaz de perturbar a elogiada performance do nosso amigo. Contrariado com o pragmatismo da moça, ele acabou nomeando dois parentes e um colega de serviço, garantindo que eram gente da maior confiança, que saberiam como agir e preservariam a reputação dela e a memória dele.

- Outra coisa, caso aconteça o pior, avisa ao pessoal que, quando eu ligar, a senha será 'o Sol apagou', não esquece, 'o Sol apagou'...

Mais do que uma senha, a menção ao astro rei foi recebida como uma homenagem, mesmo em se tratando de uma situação limite, e deixou nosso amigo reconfortado, cheio de vaidade e ai mesmo é que excedeu, atuando com brilho cada vez maior, como se sua energia fosse inesgotável.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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