Só os Loucos Salvam
Por Fernando Puhlmann

"Salve os loucos
porquê os que se dizem normais
estão acabando com o mundo."
Luis B.
O elevador abriu e André avistou o porteiro com olhar perdido, irando a rua pela janela do saguão.
- Olhando a chuva ou as gurias, Seu José?
- Oh Seu André, bom dia! Nada, estava lembrando da minha Buenos Aires. O senhor sabe que esse ano fazem 40 anos que eu cheguei aqui no Brasil? Fugido, apavorado e sem muita esperança de futuro.
- É mesmo? Eu sabia que o senhor era argentino, mas não sabia que tinha vindo fugido. - Disse André, acomodando-se em uma poltrona surrada da recepção.
- Entrei por Uruguaiana, escondido em um barco de chibo, vinha fugindo dos milicos.
- Mas, porquê? O que aconteceu com o senhor?
- Ah, era estudante em 79 e comecei a participar de movimentos contra a ditadura na Argentina, em uma manifestação fui preso, era pobre, minha mãe ignorante, não tinha quase ninguém por mim. Acabei parando na ESMA. Achei que não sairia mais daquele inferno, porém quem tem amigos, sempre tem um ángel disposto a estender sua ala.
- Sério seu José, o senhor um militante de esquerda, nunca imaginei.
- Não sei se já fui um militante de esquerda, mas sei que sou um militante da vida libre. Não o buçal.
- Nunca imaginei o senhor assim.
- Eu também nunca imaginei que ia conhecer um policial que não gostava de bater e machucar os outros. - Falou rindo o porteiro, ao moço que era policial e detestava violência.
André também riu. Já tinha ouvido essa frase mais de uma vez na vida. Mas não quis perder o fio da conversa que tinha lhe deixado curioso sobre o ado do homem e retomou com a pergunta: - Mas como o senhor parou aqui no Brasil?
-O senhor conhece um homem chamado Jorge Mário Bergoglio?
- O Papa?
- Esse mesmo, Papa Francisco para o mundo, Jorginho para mim e meus dois irmãos, mortos em uma invasão militar na favela que eu morava em Buenos Aires. Jorginho era nosso vizinho, arqueiro do nosso time de futebol da rua, sempre foi um louco. Aliás, dizem que todo arqueiro é um louco, pois não? - As risadas entrecortavam as palavras, mas olhos marejavam.
- Mas o que o Papa tem a ver com a sua fuga para o Brasil?
- Como eu disse, erámos amigos desde niños, e quando eu fui preso, ele foi a única pessoa que minha mãe lembrou para ajudar a me salvar. Ele ainda era só um padre, mas sempre foi corajoso, juntou mais 3 padres e foram a ESMA para exigir que nos soltassem, não conseguiu isso, mas conseguiu me ver. Eu me encontrava ali há uma semana, havia apanhado muito, estava muito machucado, ele quase não me reconheceu. Dois dias depois voltou, com um bispo a tira colo que conseguiu convencer o General que eu era coroinha da igreja, logo eu que sou ateu. - completou rindo. - Mas deu certo, saí naquela tarde, no outro dia ele conseguiu carona para mim em um caminhão que vinha para o de Los Libres, dalí "comprei" travessia em um barco chibeiro e entrei no Brasil.
- Mas nunca mais voltou?
- Não, minha mãe morreu de tristeza poucos meses depois, ainda não dava para voltar. Sofri no osso do peito quando descobri. Resolvi ficar, casei, tive filhos e me estabeleci em Porto Alegre.
André ficou parado vendo aquele homem pequeno, magro, de cabelos grisalhos e olhos doces. Como tu podes ar anos convivendo com uma pessoa e não ter ideia da vida e do ado dela e muito menos que ela é amiga pessoal do Papa.
- E o Papa Francisco, nunca mais viu?
- Vi sim, algumas vezes aqui em Porto Alegre. Continuamos amigos, agora pela TV - disse dando risada.
- Meu Uber chegou. Vou lá - falou André, levantando da poltrona de couro desbotada.
- Vá com Deus, Seu André. E lembre-se, confie nos loucos, eles nunca mentem por maldade.
- Porquê isso, Seu José?
- Não sei, me veio agora, todos os loucos que encontrei me salvaram de algo, seja da tortura, seja de tomar um gol.
André riu e quase na porta olhou para trás para perguntar: - E o Papa pegava alguma coisa no gol ou era "frangueiro".
- Era craque, nos salvou várias vezes em jogos encardidos.