Síndrome de pavão
Em janeiro de 1971, num domingo, como era hábito na minha família, enchemos o carro com tios e primos e, cedo, empreendemos nossa "viagem" …
Em janeiro de 1971, num domingo, como era hábito na minha família, enchemos o carro com tios e primos e, cedo, empreendemos nossa "viagem" rumo a uma das então palatáveis praias do Guaíba. Meu pai adorava isso: comprava carvão e carne, minha mãe fazia saladas e sobremesas e, armados de pratos, talheres, guardanapos, cadeirinhas de armar e muito entusiasmo (não tanto de minha mãe, que tem pele muito clara e sempre saía tostada, reclamando), acampávamos por um dia à beira do Guaíba, num autêntico churrasco de pobre feliz.
Pois este domingo de que falo foi especial: antes de deixar a avenida Ipiranga e pegar a Praia de Belas, rumo à Zona Sul, paramos diante de uma escola em cujas portas estava afixada uma das listagens de aprovados no Vestibular. E lá estava meu nome: eu era, então, um dos mais novos bixos de Jornalismo.
Não fizemos festa, não pintei a cara, e, na família, ninguém deu muita bola. Afinal, para quem estudou a vida toda em escola pública abaixo de sacrifício, era uma obrigação normal "ar" no Vestibular. E a realidade que eu enfrentaria dali a pouco, no dia-a-dia de uma universidade sem recursos no contexto de uma sociedade regida pela exceção do regime militar, me mostraria que o glamoroso mundo do Jornalismo não era bem aquilo que eu e mais da metade dos vestibulandos pensávamos.
Este meio que desencanto não veio de repente. Foi chegando com o ar do tempo, com o desequilíbrio entre professores fantásticos e outros deploráveis, com a visão de que o tal mercado de trabalho era, na verdade, uma selva, e que idealismo era palavra para ser aplicada em Gandhi e Jesus Cristo. E olhe lá!
Minha Carteira de Trabalho assinala sua primeira marca no ano de 1972, e só deixou de ser usada, em sua segunda edição, há poucos anos, com a opção pela aposentadoria. Não renego minha escolha. Vejo, no entanto, o que anexei à minha vida como escolha profissional, com olhos de realismo. E sob este olhar não há espaço para romantismos.
Pois, agora, as autoridades se mexem para revisar a situação dos jornalistas diante da lei, num cenário polarizado em que uns acham que diploma é besteira, que qualquer um, sabendo razoavelmente juntar letrinhas, pode ostentar o título honorífico de jornalista enquanto outros se batem pelo contrário. Já vi e ouvi de tudo nestes 36 anos de vida ativa em comunicação dita social no que diz respeito a quem tem direito a ser profissional da área. Defendo, sim, a reserva justa de mercado para quem esquenta o traseiro em faculdades mais ou menos confiáveis e batalha por seu lugar ao sol, como qualquer médico ou advogado. Sou adepta da meritocracia.
No entanto, tenho me espantado com o surgimento de uma figura guignolesca no meio: a do pavão de assessoria. Já existia, claro, e existe e existirá, o pavão de redação, aquele que se julga o maior texto, o cabeça mais criativa, o inventor da roda que move o jornalismo. O de assessoria, porém, tem uma peculiaridade: ele procura se sobrepor até à figura de seu assessorado. E, muitas vezes, com a conivência deste, talvez por comodismo, talvez por insegurança, talvez por paixões intelectuais em relação a seu subordinado. E isso ocorre, em especial, em assessorias de imprensa de governos. Sabe Deus a razão!
É tragicômico o resultado. De repente, em vez de o assessorado estar na linha de frente, dando entrevistas, coordenando ações, dirigindo debates, quem lá está? Ele, o assessor-pavão. Que, em geral, traz, anexada a seu currículo, alguma estada de poucos ou muitos meses no exterior, um certo verniz de cultura que, por períodos variáveis, encanta o interlocutor e, claro, uma tremenda cara de pau e uma determinação séria para exercer o alpinismo sócioprofissional. Quando quem o contratou se dá conta de que alimentou a hidra e que ela está por devorá-lo, é tarde. A criatura já ocupou todos os espaços.
Em contrapartida, há os assessores que, disciplinadamente, cumprem suas tarefas com precisão e, por, talvez, falta daquilo que sobra no pavão, se apagam. Pior: terminam desrespeitados, embora, do outro lado do balcão, seja seu nome aquele que é lembrado sempre que um jornalista precisa de uma informação que o exibicionista deixou de dar por estar preocupado com seu umbigo acima de tudo.
Conheço muitos casos de gente boa, competente, séria, que ou anos abrindo caminho para diferentes assessorados que, em não raras ocasiões, não mereciam uma nota de rodapé num jornal de bairro. E ficaram esquecidos, sem nem mesmo serem ouvidos em suas parcas reivindicações.
Lembrei de tudo isso por duas razões que se impam esta semana. Uma delas foi um artigo de um velho colunista da província reclamando do que chamou grosseria de um assessor de governo em resposta a uma sugestão ou cobrança que ele havia feito publicamente. E achei engraçado que, ao mesmo tempo em que bradava contra provável autoritarismo do porta-voz (e eu detesto grosseria , fique claro, seja de que lado for), o colunista esqueceu de exibir o original da tal mensagem ofensiva, uma coisa nada jornalística para quem tem tanta experiência no métier.
Outra razão para estas lembranças está na saída de Gilberto Gil do Ministério da Cultura, o que me motivou a escrever um texto no Clínica da Palavra lembrando momentos que dividi, profissionalmente, com este poeta fantástico enquanto fui coordenadora de comunicação da Secretaria de Estado da Cultura. Conto, ali, que, depois de mais de um contato com este cara que é mito e ponto final, me animei a entregar a ele um colar feito por índios guaranis. Foi um gesto pensado, mas que tinha a ver com a coerência de Gil em buscar valorizar as raízes do brasileiro. As fotos que estão no blog estavam quietas, no meu álbum, aqui
Donde se depreende que ninguém está livre de achar que ser jornalista é realmente uma profissão de charme que compensa toda a chatice e o montão de problemas que com ela vem junto, quase sempre.