Sim ao Pontal do Estaleiro

Uma amiga e um amigo, ambos inteligentes, articulados e cidadãos cumpridores e generosos, me mandaram mail com suas respectivas posições sobre o Pontal do …

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Uma amiga e um amigo, ambos inteligentes, articulados e cidadãos cumpridores e generosos, me mandaram mail com suas respectivas posições sobre o Pontal do Estaleiro. Um mail pedia: vote não. O outro, vote sim. Chegam ambas as correspondências eletrônicas no momento em que acabo de ler A Sedução do Lugar - A História e o Futuro da Cidade, de Joseph Rykwert, um cara que, além de ser professor emérito de arquitetura, tem dez livros publicados e, acima de tudo, tem o dom de escrever sobre um tema árido com uma naturalidade de conversa fiada em volta de uma xícara de café no boteco da esquina.
Não vou resumir as quase 400 páginas do livro; primeiro, porque é impossível, já que é grande a multiplicidade de idéias e a flexibilidade da visão do autor sobre o que foi, é e poderá ser este organismo vivo que nos alimenta e ao mesmo tempo nos mastiga e que chamamos de cidade. Confesso que nunca tinha parado para pensar sobre o tema com este monte de tentáculos que Rykwert oferece - da História à alimentação do habitante.
Nasci em Porto Alegre, no Hospital São Francisco, e antes de ter autonomia, morei com pai e mãe nos bairros Navegantes, Jardim Itu e IAPI, este último por um quarto da minha vida. Depois, eei pelo Menino Deus, por dois endereços em Petrópolis, por Ipanema, Rio Branco, Bom Fim e Auxiliadora e agora começo a conhecer o Mont Serrat. Esta itinerância tem coisas boas e coisas ruins. E a porcentagem do bom e do ruim não é taco a taco, nunca.
Ipanema, por exemplo. Morei na rua Imperial, numa casa de contos de fadas, lindamente com grades barrigudas, um mezanino absolutamente charmoso e um jardim a que fui dando forma com minhas próprias mãos e em especial minhas pobres unhas. No entanto, em que pese meu anterior encantamento com a Zona Sul, conto nos dedos as vezes em que me atrevi a levar meus filhos até a beira do Guaíba. Não só pela podridão da água, mas, acima de tudo, por, em qualquer hora do dia, ser um lugar inóspito, inseguro, cheio de marginais e, nos finais de semana, um ponto de reunião sobretudo de falsamente alegres rapazes e garotas em seus carros com som ensurdecedor, e pivetes sempre ágeis.
Quando ali morei, nos primeiros anos de 1980, conheci uma Zona Sul hostil até mesmo na vizinhança, que se exibia dona do lugar por antiguidade a ponto de não se conseguir furar a barreira da antipatia nem mesmo entre as crianças próximas. Havia, lembro bem, uma vizinha que lembrava muito Olívia Palito e que dizia: "nós somos moradores DO Ipanema há muitas décadas, a casa vem de avô para filho e de filho para netos". De modo que logo, logo, perdi a graça com o lugar em que eu tantas vezes, com pai, mãe, primos e tios, ei, na infância, domingos inteiros em horas de doce convívio e inocente alienação no que se refere à consciência ambiental, já que assávamos carne em churrasqueiras improvisadas com tijolos na beira da água.
Minha relação boa, portanto, com este rio-lago escuro, fedido e inível a não ser para iatistas e afins, não guarda mais que esta lembrança de criança. Desde que morei perto do Guaíba, descurti seu encanto aprendido naqueles domingos de pobre feliz.
E me dá uma agonia danada pensar que muitos dos que hoje defendem o "não" para as construções do Pontal do Estaleiro talvez esqueçam que há quantidade de margem do mesmo Guaíba totalmente privatizada por solenes (e algumas decadentes) mansões, em vilas fechadas ou quase, tendo sobrado para o "povo" - que é a alegada razão para o "não" - tiras de lugares sem graça e sem qualquer estrutura, banheiros inclusive.
Lembrei agora até daquela vila que ficava nas imediações de onde hoje está a Fundação Iberê Camargo e que era minha paisagem diária quando voltava para casa da rua Imperial. Fatalmente, com a realidade econômica deste desgoverno lula-petista que jura que está puxando pobre para cima da linha da miséria (quando, na verdade, está só empurrando a classe média, que sustenta qualquer país, para o buraco) a ocupação das margens de rio vai ser na base do plástico preto com caixote de maçã. Ou seja, a horrenda arquitetura do barraco que resiste até a Minuano.
Eu não quero isso para minha cidade. Prefiro uma boa obra que gere empregos, saneamento e o desenvolvimento de uma geração saudável de crianças que, um dia, quem sabe, poderão pensar melhor sobre espaço e pessoas. Quanto ao por-do-sol, tem muita margem de Guaíba disponível ainda para vê-lo. Pena que quase sempre infestada de maconheiros e cheiradores, como acontece também em nossos parques. Mas nada é perfeito. E encerro reproduzindo uma citação de Rykwert em seu livro: "Como disse Calvino, '? as cidades acreditam que são obra da mente ou do acaso, mas nem a primeira nem o segundo bastam para manter seus muros em pé'".

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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