Se o Lula não estudou…

Historinha: no final dos anos 90, um recém-feito amigo (empresário bem-sucedido, de pensamento bem cartesiano como sói acontecer com engenheiros como ele) terminou a …

Historinha: no final dos anos 90, um recém-feito amigo (empresário bem-sucedido, de pensamento bem cartesiano como sói acontecer com engenheiros como ele) terminou a amizade comigo me acusando de corporativista insensível. Tudo porque, numa troca de mails, ele, interessadíssimo que estava em se tornar escritor e colaborador de veículos de comunicação, me contou que uma amiga publicitária lhe havia "ado" uma pauta que ela havia recebido "para ele aprender como se fazia matéria." O que, obviamente, bateu na minha dignidade profissional, resultando num longo e ferino desabafo em que eu falava da falta de ética da moça e, por tabela, de quem aceitava tal "presente". Anos após, o empresário editou seu primeiro livro, virou colaborador de alguns veículos e até pouco tempo chegamos a trocar algumas mensagens, na boa.
Sempre vou lembrar disso. Para mim, a moral da história que ficava implícita naquela revelação era "eu posso fazer o que qualquer jornalista pode e não preciso ralar em faculdades mais ou menos boas para estar numa revista, num jornal, em TV, rádio ou internet". E é verdade. - para quem acha que jornalismo é tão somente "saber escrever" não há a menor necessidade de cursar uma faculdade que habilite legalmente para a área. E, usando a figura comparativa que um dos doutos ministros do STF citou para espinafrar ainda mais com a "catiguria": para ser chef de cuisine o essencial é ter talento para cozinhar. O resto - saber como cortar legumes, qual faca é mais adequada para determinado ingrediente etc - pode ou não ser aprendido em cursos, superiores ou não.
O jornalista, este ser que, na maior parte das vezes, se acha acima dos demais mortais e que, amiúde, adora transmitir seu pobre e malfeito programa de televisão de restaurantes e bares para comer e beber de graça (ele e mais uma tropa que carrega junto), pois esta criatura em geral mal-paga (e aquela outra expressão a mais, que vem antes desta, também) consegue ser invejada a ponto de terminarem com seu amado diploma. Sim, eu sei que não é o diploma que se acabou, "apenas" a obrigatoriedade dele para o sujeito ficar de 10 a 12 horas numa redação fazendo pautas, de olho em 300 mails diários e fuçando em sites e blogs para não levar furo. O que, na minha época, era diferente: em vez de perder a visão na frente do computador, se ia ficando surdo de ouvir, de meia em meia hora, os noticiários das rádios de Rio e São Paulo em ondas curtas, com toda a chiadeira. E depois ainda degravar tudo, para resenhar.
Mas os prazeres do jornalismo não ficam só nisso. Há quem dedique sua vida a controlar um batalhão de repórteres, de todos os níveis de experiência e qualidade, na busca de cumprimento de suas quatro ou cinco pautas diárias, depois na conferência das informações que chegam da rua. Detalhe bom de lembrar sobre o glamour da profissão: em alguns veículos, ainda hoje repórter vai de ônibus atrás de notícia! E tem de voltar a tempo para a redação. De preferência, sem ranço, com humor estável.
Sem contar as pautas de fotos, de infográficos, a diagramação, a pentelhação dos telefonemas da direção para fazer as chamadas matérias 500, aquelas que interessam a amigos da casa, patrocinadores, futuros anunciantes ou algo do tipo. Sem contar as reuniões ináveis para analisar o que nunca é realmente analisado, mudar o que nunca vai ser de fato mudado, colocar na roda aquela reportagem sensacional que um simples mail do andar de cima derruba porque, sabe, fulano joga golfe com o namorado da filha "do homem" e estamos conversados.
Coisa simples, isso de ser jornalista. Está aí a razão para todo mundo achar que pode e quer ser um. Afinal, escrever não é privilégio de jornalista. Ponto.
Lembrei agora de outra historinha bobinha, bobinha: trabalhava eu no Correio do Povo e o diagramador resolveu fazer um título desafiador que exigia oito linhas de no máximo seis toques cada uma. E a gente fez! Em menos de 15 minutos, porque o fechamento já estava estourando, diagramador e paginador cobrando, as rotativas esperando para botar na rua mais uma edição brilhante que teria de chegar ao mais remoto até às 5 da manhã. Tudo para, ao meio-dia, como dizia meu querido Tuio Becker, nossas manchetes, as fotos escolhidas a capricho, o texto revisado (sempre deixando escapar um maldito erro) estar embrulhando peixe no mercado público. Ah, mas isso foi no tempo em que se embrulhava peixe em jornal. Agora, estamos livres. Ninguém mais tem de se preocupar com mais nada.
Se pode até lançar um slogan: "Jornalista! Toda família, um dia vai ter o seu". E como diz o brilhante André Barrionuevo em seu deboche bem-vindo: "agora, pra ser burro, não é preciso estudar".

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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