Saudades

"Se eu sei quem foi Michelangelo Antonioni?" Fu Lana viu Zabriskie Point. E basta. O que ela lembra do filme é que era uma …

"Se eu sei quem foi Michelangelo Antonioni?" Fu Lana viu Zabriskie Point. E basta. O que ela lembra do filme é que era uma viagem. Uma casa explodia e a explosão podia ser vista em diversas tomadas. A trilha trazia Pink Floyd, Greatful Dead e Rolling Stones.


Claro que ela o assistiu alguns anos depois de ter sido lançado (1970), mas não a tempo suficiente para que a revolta não a alcançasse. A luta consistia em posicionar-se contra o sistema e romper as regras. Homens e mulheres rolando juntos, em grupo, sem compromisso com os que vieram antes ou com os que viriam depois. Viver era uma espécie de diversão, por princípio, e o princípo eram o prazer e a liberdade. Que se danasse tudo o que não envolvesse a paz e o amor.


A casa explodida era do tipo "arquitetura moderna" da época. Arrojada, horizontal e fria. Representava a prisão, o vínculo à hipocrisia e ao status quo. A explosão dizia em nome de todos: "F?-se fascistas e materialistas, que seguem as regras tal cordeiros! Viva o livre-pensar e a espontaneidade. Viva a criatividade, o instinto e o ser individual. Abaixo a guerra e vamos mudar o mundo ou destruí-lo, se for preciso". Os idealistas e os radicais estavam unidos, explodindo tótens em plena Califórnia no início dos anos 70, na representação da contracultura que quase balançou o sistema.


Antonioni morreu. Teria ele revisto seus ideais? Fácil saber. Pergunte ao espelho: você é o mesmo? Not, for sure. O mundo não é o mesmo. No entanto, aquele enlouquecer coletivo foi duradouro. Alguns nem saíram dele. Morreram ou continuam pirados. Outros estacionaram as idéias e são representados, no máximo, pela nova geração hippie pobre, que vende pulseirinhas e brincos nas ruas. Acreditar na paz mundial, no consumo mínimo e nos prazeres espirituais pode ser até viável, mas também é divertido produzir, trabalhar e, convenhamos, comprar. Adotar regras saudáveis e abandonar alguns excessos é preciso.


Nem tudo foi em vão. Cada época tem sua loucura. E para a renovação, nada melhor do que alguns parafusos soltos. No entanto, sabemos hoje que os efeitos das drogas não são assim tão inofensivos. Tá certo, ainda não concluímos se estamos pensando assim porque já fomos coptados ou porque a vida de "cara" realmente é melhor. A verdade é que é preciso se adaptar.


Há 40 anos, se adaptar era se render. As pessoas eram internadas em algum hospício, levavam alguns choques e tomavam boletas para tornarem-se "adaptados". Era fundamental parar de pensar, porque pensar doía. Hoje, encontramos prazer na teoria das brechas. E não é nada pornográfico. Descobrimos que as regras têm relativas flexibilidades, mas é preciso muita criatividade.


Era um tempo original aquele. Principalmente para os velhinhos de hoje, os que têm mais de 40.


Na verdade, Fu Lana envelheceu. Beira aquela idade em que nenhum excesso faz sentido. E nenhuma viagem substitui a vida de cara limpa. Basta lembrar de pessoas que não saíram do sonho para ficar fora dele. E quando o sonho é maior do que o sono, se sonha acordado, e a vida vai ficando vaga, sem memória, com muitos sobressaltos.


Naquela época, a tentativa era dizer que a espécie humana tinha solução. Que bastava estar vivo e feliz para viver com o próximo, ver no outro um ser legal, ok com a vida. E estar ok era muito difícil, porque a hostilidade era oficial. Era preciso lutar contra a descoberta de que o homem já vem com defeito. Era preciso, sobretudo, amar. Essa tentativa, específica, foi em vão. O mundo foi mais cruel e conseguiu plantar a discórdia no movimento. Interesses, comércio e tráfico se alimentaram da ingênua proposta. Novamente, estão vivos e doentes os homo spiens.


Alguma saída é preocupar-se com o meio ambiente ou com a política tradicional (essa opção está, rapidamente, sendo eliminada). Ou render-se totalmente aos novos ideais de sucesso. A maioria procura se adaptar. Difícil encontrar um descolado que não teve arroubos juvenis de salvar o mundo e que deseja, no fundo, no fundo, a paz mundial.


Resta saber onde está a cópia de Zabriskie Point, em vídeo ou em DVD. Para a gente perceber quais foram os pontos em que falhamos, totalmente. Antonioni vive!

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