Saudade que dói

O tempo não pára. Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo. Ninguém melhor que o nosso poeta Mário Quintana com …

O tempo não pára. Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo. Ninguém melhor que o nosso poeta Mário Quintana com mais um de seus sábios pensamentos para ajudar a definir o vazio que habita o meu apartamento sem a presença de minha filha. Gabriela Martins Trezzi está de férias na praia com o pai (um mês do verão para cada um, determinou o acordo de separação). E nada mais sofrido do que caminhar pelo apartamento sem escutar os os de Gabriela, sem juntar as peças de roupa que ela deixa espalhadas, sem lembrá-la de fazer os temas, sem guardar a caixa de leite na geladeira.


Dane-se o tal acordo. Vou rasgá-lo em mil pedaços. Quero os 12 meses com ela e não me acusem com este olhar 43 de ser egoísta. Sou mãe. Isto ajuda a explicar tanta saudade. E alguém, gozando de sã consciência, pode me apontar se tem coisa pior neste mundo do que o sentimento de saudade? Viu, sabia. Todo mundo diz que é corajoso da boca para fora. Mas em se tratando de sentimentos, a receita não é uniforme. Nem eu nem ninguém merece a angústia de esperar os retornos, de lembrar dos carinhos, imaginar que ela vai abrir a porta e entrar correndo com mil coisas urgentes para fazer antes do mundo terminar.


Creio que Quintana não disse isso, mas deve ter pensado. Tem certas coisas que nem o tempo apaga e que a maldita saudade insiste em doer. Em machucar. Em ferir. Em sangrar. E o que é afinal saudade? Não sei definir. Não sei explicar. Só sei que é um aperto no peito, uma amargura em tudo o que se faz, um gosto estranho na comida, um arrepio em pleno calor, um despertar de mau humor, um eio sem graça. Ah, sei lá. É como se a gente tivesse que continuar vivendo mecanicamente. É "avião sem asa, fogueira sem brasa, futebol sem bola, piu-piu sem frajola"? Por que é que tem que ser assim?


É claro que durante estes dias de separação não perdemos jamais o contato. A pequena telefona sempre, geralmente na mesma hora. Sem atender aos apelos insistentes do pai, que pede para não falar muito porque a ligação é cara, ela me conta em detalhes tudo o que fez. E eu correspondo. Tenho a sensação de que a Gabriela também sente saudade (talvez não na mesma proporção? hehehe) porque ontem ela resolveu telefonar na hora em que eu estava no banho. Tocava a campainha do telefone fixo e ato contínuo, em seguida, o som estridente do celular. E ela demonstrou preocupação quando finalmente atendi um dos telefones.


Longe de mim ficar torcendo para o término das férias porque como mãe devo desejar que ela tenha lazer o maior tempo possível. Longe de mim ficar contando os dias que faltam para ela voltar porque, como mãe "descasada e não aventureira", devo incentivar que ela conviva mais intensamente com o pai. Imagine se sou capaz de protagonizar cenas tão medíocres e detestáveis como essas. Não me faz te pegar nojo. É evidente que não. Até que como mãe, confesso, cheia de vergonha, sentir-me tentada a atitudes tão baixas. Mas como ser humano preciso semear os sentimentos mais nobres e dignos.


Resta dizer a você, meu caro leitor, que a Gabriela volta no dia 20. Oba! Antes do previsto. Só que eu não tive nada a ver com isso. Foi um erro nas férias do pai dela. Vou arrumar o quartinho da pequena, colocar roupa de cama nova, pulverizar com aromatizador de ambiente, pegar um DVD do Justin Timberlake que ela adora, fazer brigadeirão de microondas para esperá-la. E quando ela chegar, os meus braços não serão suficientes para abraçá-la. E meus carinhos não serão suficientes para dizer a saudade que senti. E meus beijos não vão suprir toda a ternura que eu quero lhe dar.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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