Rogai por todos nós
Nos dias de hoje não me dê motivo, ofereça a face a quem quer que seja. Nada mais poderá me surpreender. Uma banda do …
Nos dias de hoje não me dê motivo, ofereça a face a quem quer que seja. Nada mais poderá me surpreender. Uma banda do Pará chamada Calipso, com uma vocalista brega, recebe disco de prata em um programa dominical, e a platéia canta junto. Jornalistas são caçados para trabalhar sem remuneração pelo Orkut e até os mais tarimbados aceitam. Quem caminha heroicamente pelo centro de Porto Alegre não sabe se foge da polícia ou do ladrão. Muito natural que a lógica do jornalismo e as suas regras primárias de ética, fidelidade, texto preciso e informação correta também tenham mudado.
Teoria conspiratória para enganar você. A dinâmica das transformações atuais pode remexer com tudo. Menos com a tarefa de ser jornalista, que exige justamente a combinação exata de ética, fidelidade, texto e informação. Sem exagero. Impossível, em determinado dia na vida de um jornalista, deixar de ser ético, como se jogasse uma roupa muito usada fora. Impensável na vida de um jornalista brigar com a verdade, a fidelidade e a correção. Seria preciso muito mais do que nervos de aço. Um texto impreciso, então, está totalmente fora de pauta.
Se o jornalismo ainda mantém os seus princípios básicos, que, como dizia o excelente Cláudio Abramo, "é a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter", a carta do gaúcho Luiz Cláudio Cunha, ex-editor de Política da IstoÉ, em Brasília, ao expor as vísceras de uma redação de revista semanal manipulada, é PhD nestes itens. O documento, que se tornou público no site Observatório da Imprensa, questionava a linha editorial da revista, sob o comando do diretor Carlos José Marques. Competente repórter, Cunha alfineta Marques e enumera fatos jornalísticos conduzidos de forma duvidosa pelo diretor.
Evidente que o clima ficou insustentável entre os dois profissionais da IstoÉ, depois que a "Carta ao Chefe" de Cunha ou a ser assunto em qualquer roda que reunisse dois jornalistas. A demissão de Cunha, no dia 31, não foi surpresa. O jornalista, com um currículo invejável (55 anos e 37 de profissão), a partir da demissão de três colegas da revista, teve mais do que coragem. Teve caráter para enfrentar o chefe e propor uma discussão sobre o futuro das revistas semanais, em especial da "IstoEra", expondo casos graves de como não se faz jornalismo e da perda da autocrítica, muito comum entre a categoria.
Cunha ite que é natural o surgimento do "jornalismo de resultado" e seus profetas que atendem um leitor sem tempo para uma leitura aprofundada, interessado numa refeição fast food. Os adeptos desse tipo de jornalismo, no qual ele encaixa a IstoÉ, abdicam do jornalismo informativo, rico em detalhes, preciso, com exatidão, coerência, dados checados. A carta- denúncia do gaúcho nos remete a uma situação mais constrangedora. O atual diretor da IstoÉ não gosta de suíte, não quer preto e nem pobre na revista e, pasmem, também não gosta de política.
Talvez o diretor da IstoÉ tenha, infelizmente, seus seguidores. O mau exemplo é mais fácil de ser aprendido. Tem mais charme. As redações podem estar infestadas de jornalistas que não gostam de ser editores, repórteres, pauteiros e tudo o mais. Aquele que reclama de tudo e não pratica, cotidianamente, o que Abramo chama de jornalismo. Nas empresas e órgãos públicos, as assessorias de comunicação devem ter profissionais que odeiam quando o telefone toca e do outro lado da linha é alguém pedindo uma simples informação.
Tudo é tão desconcertante que me desviou dos temas normais das colunas. Falar de alguma pauta específica, do caminho para chegar à redação observando as ruas, das descobertas de pré-adolescente de minha filha Gabriela, do meu redescobrir a vida em cada novo dia presente e do meu imaginar a vida em cada sonho futuro e lembrança pretérita. Havia planejado contar das pitadas de amor que derramei sob o apartamento para esperar minha mãe que volta de um período no hospital.
Peço clemência ao editor do site. Fiquei preocupada com a carta do Cunha. Exatamente num dia em que uma assessora de comunicação de um grande órgão público federal, após dois dias pedindo para falar com algum diretor, perguntou irritada para que eu queria tanto a entrevista se ela já tinha me ado todas as informações e o resto estava no site. E um outro assessor, aqui de Porto Alegre mesmo, quase rosnou ao telefone porque pedi para confirmar um dado às 17h. Sem falar num repórter que cruzou comigo numa coletiva e reclamou todo tempo das pautas. Santo Protetor dos Jornalistas Desamparados, Desprotegidos e Resistentes, rogai por nós.