Respingos desordenados da memória
Campinas, 1936, eu atravessava a sala de jantar da casa. Chica (a mãe preta) carregava no colo o mano Eduardo, de meses. À esquerda, …
Campinas, 1936, eu atravessava a sala de jantar da casa. Chica (a mãe preta) carregava no colo o mano Eduardo, de meses. À esquerda, ao lado de uma janela por onde entravam raios de sol, meu vô Coelho deixou a cabeça cair, os óculos também e o jornal que lia e foi para o chão. Chica gritou. Com menos de cinco anos fui apresentado, ao vivo, à morte.
Ribeirão Preto, 2008, minha irmã Célia festejou seus gloriosos 80 anos num salão de festas da cidade onde morava. Jantar dançante para 300 pés, festança com a família e amigos de diversos tempos e procedências. Eu não sabia ser minha última vez de beijar aquela criatura sempre tão próxima de mim. Em novembro, ainda com os 80, sem aviso prévio, nos deixou. Baixou muito meu percentual de e-mails recebidos e enviados. Até hoje, quando penso na mana, tenho a impressão que meu computador está quebrado.
Conheci o Rio de Janeiro, em 1949, acampado com 17 colegas da Caetano de Campos, na Ilha de Paquetá, onde festejamos meus primeiros 18 anos. Bibi, meu primeiro diretor de teatro, inda que mais idoso que nós, mas amigo de todos, foi de São Paulo para o Rio fazer a bacalhoada da minha estreia como adulto. Aquele bacalhau tinha cheiro de afeto.
As cortinas se fecharam para Benedito Costa - o Bibi -, bem velhinho, numa pequena cidade paulista. Ele nem viu a plateia lotada dos amigos, de pé, aplaudindo sua trajetória de vida.
Nem Pão de Açúcar, nem Corcovado. Minha grande emoção ao conhecer o Rio foi entrar na Confeitaria Colombo e "reviver" os tempos de Chiquinha Gonzaga, Aluísio e Artur Azevedo, Bilac, Coelho Neto, Emílio de Meneses, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Martins Fontes, Paula Ney e tantos outros nomes já conhecidos de leituras. Eu já morava no Rio, pela segunda vez, desde 1965 quando, em 1994, a Colombo ficou centenária, no mesmo endereço de sempre, na Rua Gonçalves Dias.
Outras apropriações visuais naquela viagem ao então Distrito Federal: Jóquei Club Brasileiro (1926) - um patrimônio clássico - e o antigo Ministério da Educação e Saúde (1946), hoje Palácio da Cultura, ideário de Le Corbusier aplicado por Niemeyer e colegas, marco de fundação da arquitetura moderna no Brasil.
São Paulo, noite de 2003, tempestade e jogo da Seleção Brasileira pela TV. Voltando do lançamento do livro em parceria com Rafael Guimaraens -
Trem de Volta - Teatro de Equipe - no foyer do Theatro São Pedro, Porto Alegre, hospedei-me no meu hotel paulistano há anos, no Morumbi. Era a casa do meu amigo Eusilles Costa Pastore, amizade fundada em 1946 na Caetano de Campos. Ele, que já me presenteava com gostosas mordomias em minhas andanças pela cidade onde cresci, numa das viagens, já no aeroporto onde me esperavao, fez a chantagem:
- Ou você se hospeda comigo, onde moro sozinho desde a separação, ou fim das mordomias.
Sou obediente e assim foi até ele se mudar para Serra Negra. Na noite daquela tempestade, ia acontecer o lançamento do livro do mano Eduardo,
O sucesso em vendas - como vencer no mercado imobiliário.
- Eusilles, vamos logo, acho que, com esse temporal, só nós e os familiares.
Fomos.
Percebi, logo na chegada, o motivo de espaço tão grande, onde ele, inclusive, fez palestra para trezentos ouvintes. Independentemente da referida, mais de 500 pessoas não caberiam em nenhuma livraria que conheço. E tudo ficou muito claro logo nas primeiras páginas do livro, com o depoimento de Romeu Chap Chap, então presidente do Conselho Consultivo do Secovi, o sindicato da habitação, cujo início é:
"Eduardo Coelho Pinto de Almeida pode ser considerado um dos 'papas' do marketing imobiliário. E isso não é exagero."
O mano, tanto no livro quanto nas palestras que há muito faz no Brasil todo, recomenda a leitura do "Como fazer amigos e influenciar pessoas", do norte-americano Dale Carnegie, 5 mil exemplares lançados no seu país em 1936, hoje com vendas superiores a 50 milhões nos mais diversos idiomas e que continua sendo vendido. O sucesso desse livro foi o primeiro de autoajuda que chegou aos meus ouvidos quando muito jovem, mas não o li por alguns motivos: eu já era um orador de algum prestígio, exercia alguma liderança no meio estudantil paulista e estava rodeado de amigos (alguns inda continuam). O título do livro me encontrou satisfeito com minha trajetória pessoal e - um pecado típico da idade - a presunção me afastou da sua leitura. Esse pecado de um leitor compulsivo acabou vacina, pois, até hoje, só conheço autoajuda na área de saúde, tipo Cooper.
Aprendi sozinho um ato raro no gênero humano: desfazer-se de amigos e conhecidos que se tornaram indesejáveis com uma única frase:
- Favor não falar mais comigo.
Livre-me Deus dos acidentes que dos irracionais livro-me sozinho. Li, na Internet, numa propaganda do livro "O Segredo", que depende apenas de nossa vontade conquistar tudo o que a gente quiser. Senti saudades do meu amigo João Saldanha que deixou escrito: "Se macumba ganhasse jogo, campeonato de futebol baiano acabava empatado".
Meu primeiro amor não foi a professora do primeiro ano primário, Ruth, bela e jovem fêmea. Foi um ano depois, Marina Paiva Ramos, também bela, a colega de longas tranças.
Só a revi, nove anos depois, irmã de uma escritora de teatro, da qual fui ator em peça dirigida pelo Bibi.
O tempo transformara aquela menina numa beleza de quase-mulher.
O primeiro beijo foi em Yolanda Pereira Gonçalves, namoro ginasiano, numa manhã de domingo, depois da missa dominical da Igreja do Calvário, bairro de Pinheiros. Foi no Cemitério São Paulo. Ela estava perfumada com a Água de Colônia Regina.
Rua da Praia, Porto Alegre, 1957.
Na calçada da esquerda, para quem sobe, quase esquina da Borges de Medeiros, meu olfato deu-me um susto: mesmo cheiro da Água de Colônia Regina que, há anos, não era mais fabricada.
Quando em 1948 uma namorada ficou nua para mim, não foi a primeira vez da nudez feminina. Mas o "alumbramento" foi o mesmo que Manuel Bandeira confessa quando viu a primeira mulher nua. Festejei.
Cama de hotel em Caxias do Sul, 1959:
- Mario, estou sangrando.
- Normal, deixaste de ser virgem.
Inté.