Relembrar Paris
Numa tarde de domingo, no cinema, o aroma dominante era o de perfume francês. Exalava dos casacos de pele e dos cabelos bem tratados …
Numa tarde de domingo, no cinema, o aroma dominante era o de perfume francês. Exalava dos casacos de pele e dos cabelos bem tratados das finas senhoras do bairro Moinhos de Vento. Os casacos do Moinhos não são os mesmos da Cidade Baixa. O cinema não é o mesmo, as jóias e os pingentes, provavelmente, são verdadeiros e o perfume, certamente, é francês.
Elas iriam rever Paris, tal qual Fu Lana, que teve a sorte de viajar uma vez à Europa, por insistência de um amigo da antiga. Alternativo, porém exigente: "O mundo é pequeno quando não se conhece Paris". Vencera o medo pânico de avião (agora já nem tão sem sentido). Despedira-se da família como se fosse partir para sempre. Nunca se sabe? "Adeus, mundo!" e entrou no avião.
Si Crano havia escolhido os hotéis. Muito baratos: exigência dela. O elevador de gaita gemia, e quanto ao colchão, precisava-se de uma ajuda para sair dele como de um buraco. No bairro, próximo à Sacré-Coeur, reuniam-se latinos e marroquinos, todos de tez e olhos escuros. Não havia muitos sorrisos naqueles semblantes. Na rua, mal-iluminada, tinha também uma lavanderia dirigida por um casal oriental, sempre muito sérios, apressados e atarefados. Uma Paris diferente daquela que se imagina no cinema.
Ao relembrar a sua Paris, Fu Lana imaginou se aqueles casacos de pele a reconheceriam nos episódios assinados por diretores diferentes. No entanto, a versatilidade de Paris, eu te amo seria suficiente para abrigar a todos: os casacos mais fofos e leves da Província, aqueles comprados em brechós de usados, os cabelos e as jóias mais sofisticadas e os jeans mais esgotados. Dessas dezoito histórias, uma será a sua.
São contos rápidos de quem vive na cidade, chega a negócios, está ou não carente, com ou sem, de noite ou de dia, no sonho ou na mais dura e sem graça realidade. Somos aqueles que visitamos lápides, que misturamos Simon Bolívar com Simone de Beauvoir, que amos do subúrbio aos bairros nobres, como da Cidade Baixa ao Moinhos de Vento. Afinal, em Paris - e no mundo - existem regras básicas para encontros e reencontros: o acaso, um mais um e o que mais? Quem não precisou deixar os filhos na creche para cuidar dos interesses de outras pessoas? Talvez não aqueles casacos, nem aquelas jóias.
Fu Lana havia visto uma Paris assim, comum, de todo o dia. Si Crano, seu fiel escudeiro, adotara uma padaria onde lanchavam todos as manhãs. O marroquino, atendente e já amigo, os convidara para conhecer a família e se candidatava para visitar o Brasil. Em um clube noturno, Si Crano fez amizade com o crooner, que pensava que Buenos Aires era a capital brasileira. Ele cantava e levava consigo as próprias caixas de som. Da janela, os dois bisbilhotavam um apartamento no prédio da frente, que, às escuras, reunia muitas pessoas. O som estava alto - era indiano - e a luz era de velas coloridas. Na portaria, só entrava quem desse uma senha. Uma seita?, pensaram. Fu Lana quis entrar, mas faltou coragem. Acabaram a noite olhando as vitrines de uma loja alternativa de antigüidades e de revistas de quadrinhos. De dia, naquele lugar, o dono da loja costumava ficar sentado na soleira e deixava cigarros feitos à mão, na calçada em frente. Ele punha-os ali, à vista, e ficava esperando os fregueses. Estranho jeito de negociar.
Essa Paris também está no filme e fez Fu Lana sentir saudades dos mistérios e da paixão que emana daquele lugar.
A gente sai do cinema com a mistura de muitas idéias, como a memória do que traz, quando volta de viagem. Todos têm uma Paris diferente para contar.
Fu Lana faria seu episódio com o casal oriental da lavanderia, com o marroquino da padaria, com a festa estranha do primeiro andar, à luz de velas, com o vendedor de cigarros na calçada. Mas a cena final certamente seria Si Crano, de short, em uma banheira cheia de latinhas de cerveja. Na mão, um martelo e um prego. Com eles, furava as latinhas, de onde espirrava cerveja. Incrédula, Fu Lana na porta imaginava que se tratava de um novo banho exótico. Dizia ele: "Queria apenas enviar as latinhas pelo correio, para a minha coleção, e, vazias, elas pesam menos?". Paris, cada um tem a sua.