Regalo
Por Fernando Puhlmann

"O homem não pode descobrir novos oceanos
a não ser que tenha a coragem de perder a margem de vista."
André Gide
O final da tarde sempre era o horário mais quieto, mas também era o mais lindo. A casa ficava no alto da coxilha, dela ele enxergava a estrada que ia até a porteira, como um corte no tapete verde. A esquerda um capão de mato, a direita o açude, que ao cair do sol ia se tornando dourado. O mate sempre bem cevado era o único parceiro dessa hora, mas ele não reclamava, gostava de ouvir o Mensageiro Rural em paz. O Baio solto no campo vinha até a cerca e ficava escarvando, como se quisesse dizer que estava ali, o cusco ovelheiro não se mexia, deitado embaixo da cadeira. Para quem olhasse a cena, poderia parecer um quadro do Berega, refletindo a solidão do campo no entardecer, mas para Antunes, era só mais um dia de lida que havia se findado.
Aprendera na vida que quem caminha devagar tropeça menos, isso não quer dizer que ele não a tenha atropelado algumas vezes, mas os anos foram construindo sabedoria prática.
Quando os netos vinham lhe visitar, ele sempre repetia a frase que trazia consigo: "Não te afoba guri, o primeiro milho sempre é dos pintos".
A vida havia sido justa com ele, não achava que merecesse mais nem menos do que recebeu, foi feliz com a esposa que já havia partido para os pagos do Nosso Senhor. Haviam criado dois filhos doutores, a estância não era grande, mas sempre sustentou a família, agora era hora de juntar um troco para que os netos pudessem ter uma vida melhor quando ele partisse.
Levantou a cabeça e avistou um paisano montado a cavalo na porteira e com potro colorado a cabresto. Já não era comum encontrar pelo campo domador que levasse pingo para vender desse jeito, mas isso lhe deu uma saudade boa do Cabo Louco, domador reconhecido na região e que volta e meia aparecia para pousar, até que sumiu e depois se descobriu que havia sido encontrado morto em uma sanga ali perto.
Ele gostava do Cabo, sujeito de pouco estudo, mas muita sabedoria, quando aparecia pela estância ficavam horas conversando sobre as estradas da vida. Levantou a cabeça novamente e o paisano vinha subindo a coxilha ao o. Pensou em entrar e pegar o 38 que ficava na gaveta, seguro morreu de velho, mas algo lhe dizia que não era o caso.
Logo o visitante estava à distância de um grito.
- Buenas! - Gritou de lá o andante.
- Buenas, e adiante se vem em paz - respondeu Antunes.
- E como não viria em paz na casa de um velho amigo? Ou já não sou bem-vindo a Estância Alvorada.
- Cabo? Mas como assim? Me disseram que o amigo tinha ado dessa para melhor. Entre vivente. Venha tomar um mate.
- Os homens falam demais e sabem de menos - disse o cabo com o sorriso largo que tanto tinha feito falta por aquelas bandas.
Depois do abraço apertado, enquanto o dono da casa colocava mais água para esquentar o domador soltou os cavalos no galpão, precisava sair cedo no outro dia.
Sentaram um de frente para o outro, como devem fazer os velhos amigos quando mateiam:
- Mas me conta por onde o amigo andou? Tinham te dado por morto.
- Cruzei o rio, por aqui ninguém mais precisava de cavalo domado, hoje se compra tudo pronto em remate.
- Mas que rio?
- Um rio grande que tem logo acima, me demorei por lá, tava reconhecendo terreno.
- Mas que barbaridade, a notícia aqui é que tinham te achado morto na beira de uma sanga.
- Nada, atravessei e fui embora, conheci novos caminhos, novos potros, novos amigos.
- E o que te trouxe de volta?
- A saudade do amigo. Inclusive esse potro colorado é presente para ti, que tanto me recebeu no teu galpão.
- Opa, mas que maravilha. Não sei nem como agradecer. Mas na verdade nem "munto" mais, e já tenho o baio que conhece o meu tranco.
- Faço questão, nunca se sabe quando se tem uma viagem mais longa para fazer. O baio é forte, mas já tá prejudicado pelo tempo.
Antunes sorriu, não queria dar prejuízo ao amigo, mas não podia ser indelicado com quem viera de longe só para lhe ver.
- Vou aceitar o regalo então. Vou botar uma "paletinha" no fogo pra nossa "bóia". Carneei hoje à tarde. Parecia que estava esperando visita.
Quando os filhos chegaram encontraram Antunes sentado na cadeira como se dormisse, sorriso no rosto, ao lado o mate seco dos dias que tinha ficado exposto ao tempo, o Baio na cerca assistia o cusco, que tentava explicar com os olhos, a tristeza que sentia.