Reflexões sobre a privacidade

O caso da babá americana que foi parar nas páginas do New York Times é emblemático de nosso tempo. A moça escreveu uma poesia …

O caso da babá americana que foi parar nas páginas do New York Times é emblemático de nosso tempo. A moça escreveu uma poesia em homenagem à criança sob seus cuidados e forneceu à patroa o endereço de seu blog. Seria um gesto lindo, literalmente poético, não tivesse a mãe lido outros assuntos na página pessoal e se declarado preocupada com aspectos íntimos da contratada. A vida sexual da babá ganhou espaço no maior jornal do mundo. Nada demais. Nada que uma mulher de 26 anos não sinta, pense ou faça hoje. Talvez não fosse diferente antes, mas antes tais assuntos não costumavam ser colocados à disposição do mundo por meio da internet.


Gerações de meninas cresceram sob o temor de que um dia seu diário fosse visto por um pai preocupado, que certamente não entenderia seus anseios juvenis. Há um belo livro de Régine Deforges, O Diário Roubado, no qual garotos am a chantagear uma menina depois de roubar seu diário e descobrir o relacionamento íntimo com outra garota. Em breve obras assim perderão o sentido. O que se escondia a sete chaves agora é exposto em praça pública. Em vez de rubor nas faces, orgulho da própria obra, seja ela qual for.


Há páginas pessoais interessantes na internet, mas a maioria não a de diários mal-escritos e dispostos a revelar o que deveria permanecer em segredo. O velho sonho humano de ler pensamentos já foi abordado em alguns filmes. Na versão mais antiga, o personagem enlouquece ouvindo todos aos mesmo tempo. Poderia perder a sanidade também porque não temos preparo psicológico para saber o que os outros pensam. Sempre acaba mal. Ou mexe com nossa auto-estima, ou trai nossa confiança, ou subtrai-nos a fantasia.


O sucesso dos reality shows, tão exaustivamente debatido, é reflexo de uma era de despudor. Quanto mais exposta a intimidade, melhor. A máxima de Paulo Francis, segundo a qual "o que se sofre e o que se goza deve ser mantido em sigilo" soa vetusta e despropositada. O que se sofre e o que se goza vai parar no blog minutos depois. Como na velha anedota, qual a graça, se ninguém ficar sabendo?


Por isso, não surpreende que as pessoas já não vejam as câmeras de segurança como uma absurda invasão de privacidade, afinal, os bandidos estão soltos e os do bem sob observação e etc. Sequer as encaram como um mal necessário. Preferem o cinismo do "quem não deve não teme". De fato, muitos adoram. Nada como ser observado o tempo todo. Caso alguém não tenha lido o blog, pode assistir aos melhores momentos.


Outro argumento calhorda, o da "minha vida é um livro aberto", também é conversa fiada. Nos diários, as pessoas descreviam seus sentimentos mais íntimos, suas fantasias, angústias, revoltas, projetos de vida, tal qual os sentiam. Nos blogs, escrevem o que querem que as pessoas achem que sentem, fantasiam ou angustiam. Trata-se de uma idealização. Se todos sempre fomos no mínimo três - o que somos de verdade, o que achamos que somos e o que acham que somos -, agora podemos acrescentar um quarto elemento: o que simulamos ser para que os outros achem que somos, ou somos o que queremos que eles achem, e que talvez quiséssemos mesmo ser o que eles acham que somos, mas não temos coragem ou não sabemos como sê-lo. Tudo muito confuso. Mas bem exposto.         

Autor
 Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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