Recauchutagem
Se a rosa não se chamasse rosa, seria ela, porventura, menos perfumosa? (Julieta) Palavras, palavras, palavras… (Hamlet)  
Se a rosa não se chamasse rosa, seria ela, porventura, menos perfumosa? (Julieta)
Palavras, palavras, palavras? (Hamlet)
Shakespeare
Estávamos no sítio de meu irmão Eduardo, no interior de São Paulo, quando, ao responder a uma pergunta sobre um eio a cavalo, ele falou em légua. Como aprendi na infância que um cavalo anda 12 km por hora, fiz o cálculo que o cavalo anda duas léguas por hora, 2 vezes os 6 km da légua. O Eduardo me disse que achava que uma légua tinha 7 e não 6 km. Como não havia dicionário no sítio, ao chegar de volta à casa dele, na capital, já entrei pedindo um dicionário. De acordo com o Lelo consultado, a discussão era válida, pois a légua é uma medida muito vaga e, de acordo com os portugueses, tem 5,555 km. Aborreci-me com o fato de carregar, por mais de meio século, a ilusão de que uma légua tem 6 km. Ao chegar ao apartamento de minha irmã Célia, um Aurélio colocou-se à minha vista. Não me contive e li: "Medida itinerária equivalente a 6.000 metros". E o Aurélio explica a "légua de beiço", inusitada criação brasileira e que vem a ser "indicação vaga de distância, aquém da realidade, por homens de raça, com beiço inferior distendido na direção que se a deve percorrer". Dia seguinte, em casa de minha irmã Rachel, perguntei-lhe sobre a légua e ela nem pestanejou: 6.000 metros. Já a minha filha Carla, que acompanhava minha pesquisa sobre a légua, meteu a sua colher: "Quando estudei as capitanias, a légua tinha 5.000 metros". Pois é, de volta para o Rio, ao chegar em casa, esperava-me o livro Arca de Blau que a gentileza de seu autor, meu amigo Carlos Reverbel, enviara de Porto Alegre. Por ser pitéu longamente desejado, caí, de imediato, na leitura. Eis que logo na página 15 encontro uma referência à "légua de sesmaria" que o Aurélio já me ensinara ter 6.600 metros. Mas o tema légua desafiou mais um pouco a minha curiosidade e fui descobrir que, de acordo com Larrousse, os ses concordam com a minha filha Carla e fecham negócio por 5.000 metros. Já o Webster livra a cara de ingleses e americanos da discussão e faz da légua um imenso elástico que vai dos 3.900 a 7.400 metros. Felizmente, na enciclopédia Delta Larrousse, encontro a resposta para tantos desencontros de medidas: além da "légua de beiço" há a légua quilométrica e marítima, a de sesmaria e aquela que aprendi na infância com 6.000 metros, a légua geométrica. E a légua terrestre, a légua comum, com 4.445 metros. Assim como a légua tem diversas medidas e a "légua de beiço" não tem medida nenhuma, há anos fui surpreendido ao telefone, por um pedido de "um minutinho". Perguntei à gentil interlocutora: esse seu "minutinho" tem quantos segundos? Daí me lembrei que no Brasil, há tempos, para enfarte dos britânicos, inventaram o encontro "tipo duas horas" e resignei-me ao fato de que até a imprecisão pode ter expressões precisas.
Esse aprendizado com a légua, assim como os 1.609 da milha terrestre e os 1.809 da milha marítima, obrigam-nos a exigir especificações quando nos falam em sesmarias e alqueires. Um mineiro, por exemplo, pode se dar muito mal ao comprar um alqueire de terra em São Paulo, cujos 24.000 metros quadrados são exatamente a metade do alqueire mineiro e goiano que, por sua vez, são a metade do alqueire baiano. Esses alqueires tão diversos ainda têm parentes que não pertencem ao sistema métrico! E vamos encerrar logo essa crônica para que não pareça conversa de baiano.
Antes de encerrar, uma confissão. Sexta-feira, 29, sentei-me para escrever e fui atropelado por um pedido de socorro da minha mulher referente ao Imposto de Renda, cuja entrega teria que ser naquele dia. Cumprida a tarefa, desencavei esta crônica publicada há 10 anos num jornal de bairro, confirmei que as medidas continuam iguais, a légua do beiço também, sem mesmo ganhar uma linguagem politicamente correta - légua de lábio inferior - e "mandei brasa, mora?", como cantava Roberto Carlos há 40 anos. E, agora, com licença, vou tirar o traseiro deste banco para ir ao outro banco explicar para o meu gerente que nunca usei o crédito deles por causa da extorsiva taxa de juros. Aliás, sempre que uma telemarqueteira me telefona para oferecer-me crédito, pergunto qual a taxa e respondo: "Avisa aí que pela metade da taxa eu empresto ao banco".
Inté.
* Mario de Almeida é jornalista, publicitário, dramaturgo, autor de "Antonio""""""""s, caleidoscópio de um bar" (Ed. Record), "História do Comércio do Brasil - Iluminando a memória" (Confederação Nacional do Comércio), co-autor, com Rafael Guimaraens, de "Trem de Volta - Teatro de Equipe" (Libretos) e um dos autores de "64 Para não esquecer" (Literalis).