Quintana e a Academia
Alguém me pergunta se José Sarney era membro da comissão que convidou Aurélio de Lyra Tavares a ingressar na Academia Brasileira de Letras, episódio …
Alguém me pergunta se José Sarney era membro da comissão que convidou Aurélio de Lyra Tavares a ingressar na Academia Brasileira de Letras, episódio aqui narrado na semana ada ("A lira desafinada"). Ele não me contou, de propósito, quem foram os paisanos. Sentiu a provocação da pergunta, de como conseguira ingressar na Casa de Machado de Assis, e retrucou, como se dissesse: "Não pedi nem obriguei ninguém". Não precisou acrescentar qualquer alusão irônica à lustração de botas.
Não sei, pois, se Sarney contribuiu para que o general trocasse o brim verde-oliva do Exército pelo veludo verde-garrafa da Academia. Mas, com toda a certeza foi ele quem impediu o ingresso de Mario Quintana na instituição, em 1982.
Quintana candidatou-se pela primeira vez em 1981, com o apoio de intelectuais gaúchos. Ninguém sabia, no Rio Grande do Sul, a topografia do caminho que, então, abria aquelas portas. Pensava-se, com simplória ingenuidade, em algum chavão latino, como "ars, scientia et virtus". Acabamos convencidos de que nem mesmo ao velho Machado se respeitava. Prevalecia: "Ao vencedor, as batotas!".
A primeira tentativa de Quintana nasceu morta. Telefonema de Antônio Houaiss a Maurício Rosenblatt pediu a retirada da candidatura. Eduardo Portella, ministro da Educação de João Figueiredo, se desaviera com a ditadura e deixara o governo. Segundo Houaiss, impunha-se sua eleição sem concorrentes para preservá-lo de eventuais represálias. Era assegurada a Quintana a vaga da próxima eleição.
O poeta recusou o arranjo, mas por solidariedade. Achou que concorrendo e perdendo, enfatizava mais a importância de eleição de Portela. É difícil saber se a boa intenção foi mal-entendida ou se o amadorismo com que a candidatura era conduzida resultou na segunda derrota.
A terceira tentativa foi orientada por Vianna Moog, então o único gaúcho na Academia. Quintana cumpriu todo o ritual, foi ao Rio de Janeiro, fez visitas protocolares e voltou para o Rio Grande do Sul, certo, como todos nós, de que desta vez obtivera o número de votos necessários. Seu concorrente mais próximo era Carlos Castello Branco, grande nome do jornalismo, mas sem a importância literária do nosso poeta.
Nas vésperas da eleição, Quintana recebeu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul o título de professor "Honoris Causa". Estava feliz e eufórico como nunca. Concluída a cerimônia, um repórter lhe perguntou, sem malícia, já que ele agora parecia ter descoberto o caminho, como se ingressava na Academia.
Quintana, fazendo humor, respondeu que dependia do "QI" - quem indica. O Globo publicou a piada no dia seguinte. Ninguém viu maldade nela. A não ser José Sarney, cabo eleitoral de Castello Branco, que distribuiu cópias da reportagem para todos os acadêmicos, na hora da votação.
Houve algumas indignações - encomendadas, é claro - e Vianna Moog tentou aparar o golpe. Esforçou-se em vão para sustar a votação. No dia seguinte, o Jornal do Brasil publicava o telefonema de Sarney a Castello Branco, dizendo: "Missão cumprida". Uma façanha, com toda a certeza, mas da qual não se pode separar a perfídia cometida.
Sarney cometeu um equívoco em relação a Castello. Não percebeu que a integridade pessoal, mais do que o imenso talento, é que o tornava um ícone do jornalismo. Quando quis cobrar a conta, não levou. Nada lhe tinha sido pedido, ninguém lhe devia nada. Foi criticado por Castello por suas mambiradas e ficou possesso.
Muitos anos depois, Sarney veio a Porto Alegre e fez questão de encontrar Quintana. Eu soube depois do caso ado. Perguntei ao poeta se ele não se sentira constrangido. Respondeu-me: "Não, não me senti. Ele foi muito gentil comigo!".
Foi quando tive certeza de que "Anjo Malaquias" era autobiográfico.