Quatro histórias reais e uma futurista

Por Flávio Dutra

Ceia noturna

Já era madrugada quando a jovem senhora perguntou:

- Vocês não estão com fome?

O cunhado lembrou que havia comprado pão e frios antes de vir a esse encontro. Foi até o carro e buscou as compras para saciar a fome do pequeno grupo.

Os sanduíches improvisados foram servidos e desfrutados quase como um ritual. Havia tristeza no ar, mas o inusitado de tudo acabou por provocar altas gargalhadas, quando se deram conta que estavam na capela mortuária do cemitério.

- Gente, que vergonha, nosso irmão está sendo velado e vocês ficam aí, de risadas. - censurou a irmã mais velha.

A frente deles, no esquife, o corpo inerte do irmão testemunhou a ceia cemiterial. 

A consulta

Conhecido publicitário gaúcho chega à portaria do prédio onde funciona a clínica ginecológica, potencial cliente da premiada agência. 

- O senhor tem consulta marcada com a doutora?-  pergunta o porteiro.

- Sim. - responde o publicitário e faz um ar afetado.

Depois das tratativas negociais com a futura cliente, o publicitário sai do elevador capengueando, simulando ter sofrido um exame na clínica ginecológica.

- Tudo bem com o senhor, doutor? - arriscou perguntar o porteiro, solidário.

- Tudo bem, só que o exame da doutora é muito invasivo. Mas resisti bem. Obrigado e boa tarde.

A cara de espanto do porteiro merecia uma foto.

Universo paralelo

Sempre que chegava ao motel a primeira providência do parceiro era ligar no canal de sacanagem, também conhecido por Canal Adulto.

O hábito não correspondia a atenção ao que se desenrolava na tela, nem mesmo servia de estímulo porque os roteiros dos filminhos eram sempre os mesmos e já praticavam todos. Por isso, só o que repercutia no quarto à meia luz era o arfar do casal de atores durante a transa.

Já eles procuravam variar e não havia limites para a pegação. Naquela noite, porém, o inusitado aconteceu. Logo após as preliminares, no início das variadas posições, nenhum gemido mais se ouviu na TV. A quebra da rotina do ambiente chegou ao casal na cama, que parou com toda a movimentação, justo no momento em que haveria uma troca de posição.

- Que que houve. - perguntou a moça.

- Este silêncio não é normal. - respondeu o acompanhante.

Os olhares dirigiram-se então para a TV e viram surpresos aqueles que seriam suas réplicas na telinha, parados, retribuindo o olhar e ainda embasbacados com o que acontecia na cama em frente à TV.  Não por pudor, mas por instinto, a moça no motel logo puxou o lençol para esconder a nudez. "Isso não pode estar acontecendo", falou baixinho, como se tivesse receio de ser ouvida na TV.

A cena durou alguns segundos, tempo suficiente para o casal do pornô, ada aquela espécie de constrangimento, voltar à atividade. Agora, visivelmente, imitavam a movimentação que os havia embasbacado.

O casal do mundo real, com a animação recuperada, também voltou a lascívia na cama, depois que o homem tentou explicar o que acabaram de assistir.

- Isso deve ser coisa desse tal de metaverso, multiverso, sei lá. Vamo nóis, amor, agora vira...

Fim de semana na fazenda

Sempre que ava à caminho da fazenda lá para as bandas da Fronteira, o bem sucedido empresário, já descasado, mas ativo e operante, chegava no sortido bolicho e pedia um pacote de erva mate e dois preservativos "para o fim de semana".

A atendente, bela como só as fronteiriças sabem ser, sempre indagava sobre o tamanho dos preservativos pedidos pelo "doutor" da cidade. E sempre ouvia a mesma resposta, que sempre provocava um risinho nela: "Extra grande, por gentileza".

Tantas vezes se deu essa interação que um dia a fronteiriça não resistiu e seguiu junto com o empresário para conferir se "era tudo aquilo". 

A estratégia dele, afinal, dera o resultado esperado, mas nenhuma das partes revelou os detalhes daquele encontro no fim de semana. Mas deve ter agradado a ambos porque as visitas da moça se repetiram tantas quantas foram as vezes em que o "doutor" ou no bolicho para comprar erva mate e camisinhas GG.

O cronista e a senhorinha

O festejado cronista foi interrompido na sua caminhada matinal pela sorridente senhorinha, também adepta das andadas ao ar livre.

- O senhor não é o Fulano? - perguntou.

- Sim, eu mesmo. - respondeu o escriba e já se empertigou à espera dos elogios aos seus textos publicados em jornal de grande circulação.

- Eu achei que era, mas estava em dúvida, aí resolvi perguntar.

Ficou aquele átimo de tempo em que o cronista aguardou os elogios que não vieram.

- O senhor trocou um pneu pra mim, tempos atrás. Sou muito agradecida.

Sem esconder a frustração pelo desfecho do encontro, o cronista pensou lá com seus botões.

- Pelo menos isso pode dar uma boa crônica. 

E foi concluir sua caminhada, intempestivamente interrompida.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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