Quase 60

Na parede do meu quarto tenho uma galeria de fotos. Mais de 90 por cento destas fotos são de meus filhos. Em algumas delas, …

Na parede do meu quarto tenho uma galeria de fotos. Mais de 90 por cento destas fotos são de meus filhos. Em algumas delas, eu também estou. Mas há outras, em que aparecem meus pais e eu. Ou só eles. Preciosidades de época, porque não havia como ter muitos registros naqueles tempos de fotógrafo caro e pouca grana. Como sempre, aliás.
 Tenho a do casamento deles, feita em estúdio, clássica, com pose, olhos distantes e românticos,  talvez emprestado das irmãs que casaram antes, corte impecável, feito por costureira boa. Outra, ainda do casamento, é bizarra: minha mãe está no meio de um terreno baldio, capins marcando a borda do vestido de cetim, aliança brilhando na mão esquerda, buquê, tiara, véu, sorrindo. Em outra, o casalzinho está no balcão de uma casa de madeira, ele com o braço sobre os ombros dela, que está toda envergonhada. E há aquela em que eu sou a fotografada,  entalada  numa cadeirinha de balanço em formato de cavalinho, careca como um melão, sol batendo nas imensas bochechas, pés gordos e descalços. 
A mais antiga de eu mesma é um postal, em branco e preto, em que, numa sala cuja parede se destaca  um diploma ao lado de um busto de índio com cocar, daqueles feitos de gesso, em primeiro plano há uma mesa posta com pratos de docinhos, um pudim de leite e salgadinhos. Sentadas juntas, lado a lado, nesta mesa, há quatro mulheres, uma delas de olhos fechados provavelmente pelo estouro do flash. Todas de riso contido, meio encabuladas.
Atrás delas, em pé, um homem calvo, de terno e gravata, entorna um copo - acho que de cerveja- , e os outros dois ao lado dele, também ostentam, orgulhosos, suas bebidas. Todos usam bigode e um deles, em vez de paletó, exibe prosaicos suspensórios.  O casal mais da ponta, com aquela jovem de cabelos escuros, curtos e cheios, e o rapaz bem moreno, elegante, de terno com lencinho branco saindo do bolso do casaco, olha fixo para a câmara. Os dois, com meio-sorriso. No colo da jovem, se vê um bebezinho, com chupeta, mãos gordinhas se destacando do xale longo e incríveis olhos atentos para o pai e a mãe.
Ali estou eu, há 59 anos, com - diz minha mãe - três meses de idade, aproveitando as delícias do colo da dona Luci, num momento de comemoração que, por mais que eu pergunte, ela não sabe (ou não quer) localizar. Vai ver que é por causa do vaso com inevitáveis copos de leite que decoravam as casas humildes (e acho que até as não tanto) naqueles anos 50 do século ado. Ou os bibelôs sem graça sobre o balcão em que está encostada. Minha mãe, com a cabeça inclinada, como até hoje, característica que a identifica na multidão a quilômetros de distância. Meu pai, com o cabelo ondulado, pontudo no alto da cabeça, motivo de eterna crítica de minha mãe. Nada mudou. Apenas a vida que andou.

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

Comments