Quando as árvores se lembram

Não é de agora que eu pescruto os sites de jornais e revistas mundo afora em busca especialmente do curioso, do inusitado. Blogueira por …

Não é de agora que eu pescruto os sites de jornais e revistas mundo afora em busca especialmente do curioso, do inusitado. Blogueira por opção mas também por necessidade, na época em que fui saída de mercado de trabalho - aquele, com hora pra sair e chegar -, fiquei especialista até em traduzir línguas que não domino. Um exercício que, aliás, recomendo a todos, de todas as idades e interesses.


Mas, voltando à vaca fria, antes que esta tarde de primavera quente e ventosa me disperse ainda mais, contava eu que andava, faz pouco, de galho em galho neste imenso figueirão virtual que é a internet quando abri minha caixa de mail e vi, enviado pelo Paris Match, o seguinte título: "quand les arbres se souviennent". Cliquei no link e abriu-se uma foto (que, por sua vez, remete a um vídeo) de duas estranhíssimas árvores com esta legenda intrigante e instigante: "Velhas possivelmente de muitos séculos, elas foram testemunha de acontecimentos grandiosos e revolucionários. Nosso fotógrafo Richard Melloul foi aos quatro cantos da Terra para tocar o fundo se suas raízes. E confiou a ParisMatch.com os emocionantes segredos desta reportagem excepcional. Na foto, a oliveira de Cristo no jardim de Gethsêmani, em Jerusalém. Jesus ali recebeu o beijo que o apontou aos soldados romanos que vinham prendê-lo. Atrás, a igreja que abriga a rocha sobre a qual ele se retirou para rezar".


A foto é simplesmente linda. Não importa se as tais árvores que parecem uma só bipartida viram ou não Jesus. Se Jesus, esse que está na boca de tanto desesperado quanto na de tanto canalha, existiu, foi inventado ou é o que dizem que foi. Tampouco se a rocha que está dentro da igrejinha é aquela sobre a qual ele orou. A foto dá exatamente a dimensão do título da matéria - quando as árvores se lembram.


O depoimento de Melloul, no vídeo, dá conta que foram raras as árvores que ele fotografou e que viram momentos leves, como cenas de amores célebres. A maior parte assistiu tristes cenas, como a árvore que se descortina, da janela do sótão em que se refugiou Anne Frank,  ou aquela que aparece junto ao portão do campo de concentração de Auschwitz, na época seca e hoje enlouquecidamente verde. Melloul se emociona mesmo é quando fala de uma bela história, envolvendo o pintor Renoir e um quadro que logo pintaria, reproduzindo árvores que seriam, pela vontade do dono do terreno, derrubadas. O quadro se chamaria La Ferme de Colette, eternizando o lugar que, milagrosamente, foi preservado. Renoir o pintou possivelmente por medo de que ele, um dia, desaparecesse.


Porém, o mais bonito do depoimento do fotógrafo é sua confissão de fé de que uma árvore é portadora, ela mesma, de muita emoção. E que todas as pessoas têm uma história com uma árvore. Eu, aqui, da janela do quarto andar deste prédio de escritórios cinza, de vidros blindados, alumínio, etc etc, há três meses venho convivendo, ao alcance da mão, com esta velha figueira cheia de sabiás, pardais e bem-te-vis. Ela, com certeza, está aqui há muito mais tempo que o prédio, a própria rua e, claro, eu e todos que aqui amos horas de nosso dia, de nossa vida. Deve ter muitas lembranças, esta árvore. E faz, agora, parte das minhas, para sempre. E, acho que, mais que se lembrar, as árvores nos fazem lembrar.

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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