Pra onde vais, criação?
Pra onde vais, criação? Estou apenas observando: somem os detalhes dos objetos, desaparecem as características de cada coisa. Tudo agora é o limbo do …
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Pra onde vais, criação? Estou apenas observando: somem os detalhes dos objetos, desaparecem as características de cada coisa. Tudo agora é o limbo do design moderníssimo. Alguma espécie de esterilidade está parindo embalagens vazias por fora; a monotonia engarrafa refrigerantes; o tédio empacota no balcão. Tudo se estiliza e não há mais identidade na minha memória comercial. É o vácuo visual. Como ocorreu isso? Que limpeza exagerada sofreram as aparências? Não consigo mais decorar nada, esqueço produtos e artigos, por si próprios anônimos no anonimato geral da mesmice. Reparem comigo: os móveis estão ficando unos, aglomerados da matéria ao estilo, na repetição de linhas excessivamente alinhadas. A forma se pasteuriza antes de existir, e o acabamento glorifica a falta de personalidade em quase tudo. Ao redor, não percebo referências originais em vidro, madeira ou metal, sem falar na inexpressividade do plástico e das resinas. A confusão se estabelece industrialmente, é a anulação das diferenças. Estou perdido em meio à regularidade do novo. E vêm os símbolos sem conteúdo, as logotipias insossas, as marcas abstratas de irritar pupilas. Tortura ocular em fachadas e cartazes, em painéis e pontos-de- venda, em outdoors e back-lights, em anúncios e comerciais. Tortura que fere porque agride pela acomodação. Lapidaram as arestas em nome de uma revolução estética cujos méritos são difíceis de notar. Alisaram demais os ângulos, curvaram as curvas em demasia. Tudo se insinua, faz que vai e não vai, e olha você indeciso com cinzeiros que não aceitam cigarros, olha ele teimando com portas-lápis que recusam lápis, olha eu desesperado com a indistinta finalidade de um frasco (enfim, talvez seja o frasco pelo frasco. Se é assim, fico no desinteresse pelo desinteresse). Que eu saiba, a credibilidade aparente de um artigo em seu continente sempre se deu pela sua originalidade particular, o que deixava recall no meu olhar até mesmo depois de eu fechar os olhos. Antigamente os objetos se expunham pura e simplesmente, afirmando sua origem e seu objetivo numa piscada. Mas hoje tudo se evapora. Prateleiras monótonas, carregadas de sacações tão inusitadas quanto semelhantes umas às outras. Tudo, afinal, se concentra e se condensa no traço último, no encontro das fórmulas que comprometem a lembrança com as soluções que desdenham as preferências. Da tampa ao fundo, do gargalo ao bico, da alça ao fecho, da asa ao bojo, do lado ao comprimento, da altura à largura, a criatividade resvala para a incompreensão ou o aborrecimento do consumidor. Que nem sempre se aborrece. Minha visão, fã do marcante, viciada no inesquecível, se incomoda com o panorama. O meu gosto se esvai por entre caixas, garrafas, tubos e armações. Não vejo sinais de vida inteligente nas pranchetas. Xampu parece detergente, detergente parece veneno, veneno parece patê, patê parece tinta, tinta parece remédio, remédio parece cosmético, cosmético parece droga? Vai ver, são. Suave poluição na retina. Me nego a a continuar olhando e não entendendo, astigmatizando o zero. Quero mais é enxergar, apalpar, sentir a diferença. Basta de sutileza feito cor, formato e volume. Me tragam o contraste de volta, me tirem dos meios das gôndolas, tapem vitrines, escondam catálogos, não me mostrem os novos lançamentos! Estou cego de tanta perfeição. Míope desses nomes e dessas marcas misturadas na expectativa do engano freqüente, do erro na escolha, da involuntária compra. Por favor, onde é a saída desse imenso shopping da rotina do signo? Placas, camisetas estampadas, sacolas, selos adesivos, alfabetos, rótulos, luminosos, cabeçalhos, diagramações, lay-outs, esboços, planejamentos gráficos, programações visuais, desenho industrial de cabo a rabo - eu não vos agüento mais, de tão assépticos, tão iguais, imaginados para não recordarem o dom de opor. Eu preciso de imagens pra gostar ou detestar, que o meio termo me dói. Eatilização, vade retro! (Texto originalmente publicado em 12/1/83. Republicado porque na semana ada enjoei num corredor de supermercado.) |
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