? O importante não é vencer todos os dias, mas lutar sempre? 3l6i5l
Waldemar Valle Martins
O quarto silencioso foi invadido pela música vinda da rua, marchinhas de carnaval em pleno inverno. Está frio aqui, por que não fecham a janela? Bom era o Carnaval em São Borja, no calor, todo mundo no Clube Comercial e depois acabávamos no Rio Uruguai. Que barulho chato, parece um hino, não é carnaval. Às vezes eu fico na dúvida se o barulho vem da rua ou da minha cabeça, logo agora que eu posso sestear, vou ter que avisar a Maria Luiza, não dá para deixar a janela aberta, além do barulho, o frio.
-Tu não vais comigo sem falar com o Pai, tu sabes que ele vai ficar uma fera.
- Sempre assim, João, eu sempre preciso pedir e tu sempre podes fazer qualquer coisa na hora que tu queres.
- Luizinha, não é qualquer coisa, é ir para frente do Piratini defender o Brasil. Pede para o Pai quando ele chegar, aí se ele deixar tu vais amanhã, eu prometo que te levo.
- Tu sabes que ele não vai deixar, ele acha que o Brizola é comunista. Ele é comunista, João?
- Não sei se ele é comunista, eu acho que não, ele só quer que respeitem a constituição. Mas eu nem estou indo lá por isso, eu estou indo lá para ver o movimento.
- Eu acho que ele é comunista, a mãe disse que conheceu ele lá em São Borja, quando ele era mais novo e ele sempre foi metido com pobre.
- A mãe conheceu todo mundo em São Borja.
Silêncio, nem a música escuto mais, preciso levantar e ir ver se a Luizinha saiu com o João, se saiu, vai ter para ela, política não é coisa para mulher. Mas eu vou daqui a pouco, estou cansado demais, esses dias de frio me derrubam. Preciso arrumar esse teto, não lembrava que estava tão destruído assim, a Maria Luiza podia ter me avisado.
- Mãe, para de chorar, eu não aguento te ver assim. O Pai já foi lá falar com o Tio Zeca, eles vão soltar o João.
- Eu não estou chorando, tô rezando. Tteu pai me mandou rezar para ele conseguir buscar o guri. Onde ele estava com a cabeça de se meter em política estudantil?
- Mãe, tu conheces o João, onde a Ritinha vai, ele vai atrás. Desde que ele entrou para faculdade de Jornalismo, ele tá perdido por esse amor. Eu até que acho bonito isso.
- Não gosto dessa guria, me deixa rezar. Reza aqui também, vem pedir pelo teu irmão.
- Eu também quero ir para faculdade.
Ficou escuro aqui de repente. Será que a Maria Luiza já preparou o jantar? O João vai voltar para casa, tem que ter comida para ele se recuperar. Preciso mudar essa mobília, mas dinheiro da onde se essas crianças não param de gastar? A mãe podia ter mais cuidado com elas também. Vou falar com todos eles, precisam me ajudar, a coisa não está fácil.
- Alguma novidade?
- Nada, o Zeca disse para gente que está tentando descobrir para onde levaram ele, mas que ainda não conseguiu a informação.
- O pai não consegue informação com mais ninguém, faz três meses que levaram o João, impossível que não saibam onde ele tá.
- Calma Luizinha, teu pai anda uma pilha de nervos, não começa a querer pressionar ele que vai piorar.
- Eu vou lá falar com o Tio Zeca.
- Não vai não, tu vais rezar para Deus nos ajudar. Vai dar tudo certo.
- Se vai dar tudo certo, porque tu tá chorando?
- Não to chorando.
- Tá sim, mãe, tu só chora faz três meses, vamos no Tio Zeca, ou vamos em algum outro amigo de vocês, me disseram que estão matando estudantes.
- Mentira, só matam os comunistas que querem entregar o Brasil à União Soviética, o teu irmão não é comunista, ele logo vai estar em casa.
- MÃE, PARA COM ISSO, VÃO MATAR O JOÃO SE A GENTE NÃO FIZER NADA.
- Quer fazer? Reza, reza que o teu pai está resolvendo.
Quando que trocaram a minha cama por uma de solteiro? E a Maria Luiza está dormindo aonde? Eu vou lá na sala ver isso. Como assim, me tiraram do meu quarto, me colocaram separado dela? Eu preciso ficar mais em casa, ela está perdendo o freio. Hoje eu converso com ela, quero voltar para o meu quarto, para minha cama e ela junto. Só o que faltava, agora marido e mulher dormindo em quartos separados. Aí sim.
- O que o médico falou?
- Ele teve um derrame, não aguentou a dor da morte do João.
- E quem aguentou? Tá, mas como ele tá? Eu posso ir no hospital?
- Amanhã eles vão liberar as visitas, aí a gente vai junto, Luizinha. Agora eu preciso deitar.
- Amanhã eu vou no advogado.
- Que advogado?
- O que ajuda quem os milicos prendem. O pai de uma colega conhece um.
- Para que? Meu João já morreu, mataram o meu João como se ele fosse um bandido.
- Por isso mesmo, alguém tem que responder por isso.
- Faz o que tu quiseres, eu vou rezar e me deitar.
- Deixei o jantar pronto.
- Não tô com fome, só preciso rezar e dormir.
O que é aquilo na parede? De lá que vem o vento gelado. O que será isso? Vou perguntar para a Maria Luiza, ela compra cada coisa e não me pergunta mais nada, agora ela que manda na casa de certo. Eu preciso trabalhar menos e ficar mais em casa, as crianças estão crescendo e eu longe, mas é muito carnê para pagar. Ando com saudades do João, guri não pode se criar longe do pai, preciso ficar mais com ele. Onde será que ele anda?
- Mãe, cheguei.
- Oi, meu amor, como foi o colégio?
- Foi bom, tô com fome.
- Vem cá que eu vou te fazer um sanduiche.
- Quero aquele que tu ?disse? que o Tio João gostava.
- O com mortadela?
- Isso. Por que que ele morreu mesmo?
- Por que uns homens maus tomaram conta do país e mataram algumas pessoas que queriam justiça para as outras.
- Hum... e a vovó?
- A vovó desistiu da vida, deitou e não levantou mais. Mas come aí e vai trocar a roupa, tira o uniforme para não sujar.
- Mãe, posso ir lá dar um beijo no vovô?
- Pode, depois eu te levo lá no quarto.
- Será que ele sente quando a gente beija ele?
- Eu acho que sim, o médico disse que sim, que ele pode sentir.
- Será ?se? eu rezar bem forte ele melhora?
- Não sei meu amor, eu só sei que esse sobrado já viu reza demais e pouco efeito.