Pobre pobreza

Descobri por que pobre não vai pra frente. É que o pobre não muda o seu estilo de vida. Pobre, pra começar, é muito …







Descobri por que pobre não vai pra frente. É que o pobre não muda o seu estilo de vida.


Pobre, pra começar, é muito desapegado a dinheiro. Mal recebe seu salário-mínimo, logo o gasto, sem pensar no amanhã. Já viram pobre fazer economia? Não viram. Pobre não pode ter na mão uma nota graúda, digamos R$10,00, que em seguida a troca. Esse desapego anda reforçado: antigamente, pobre até guardava dinheiro em colchão. Hoje, nem colchão o pobre guarda mais.


E o padrão habitacional do pobre? Pobre mora sem gosto estético. As casas dos pobres não têm um mínimo de beleza e conforto. Tudo mal feito, coisa aproveitada de sucata. E vão morar sempre uns ao lado dos outros, formando aglomerações horrorosas, desinteressados de apartamentos e residências de melhor nível, comprometendo o urbanismo e a paisagem.


Pobre come de um jeito abominável. Suas refeições não são balanceadas nem respeita os horários dela. Se alimentam de qualquer coisa digerível e andam até devorando ratos, o que é um atentado contra a culinária brasileira e um desrespeito aos padrões sugeridos pela Organização Mundial da Saúde. Isso sem falar que fazem jejum sem orientação de nutricionistas e os que dispensam as boas maneiras à mesa e, por vezes, inclusive a própria mesa. Argh!


Nas questões de transporte, pobre se mostra muito resistente às conquistas da nossa pujante indústria automotiva. Pobre não anda de carro. Prefere ônibus, quanto mais apinhado de pobre, melhor. Muitos, acreditem, nem embarcam em transporte coletivo, exibindo uma total auto-suficiência, andando a pé. Um exotismo, considerando tantos meios de transportes rápidos e confortáveis à sua disposição hoje em dia.


Desleixado como pobre, só outro pobre. Com tudo. Por exemplo, a saúde. Pobre detesta médico. Nos consultórios não aparecem pobres. Vai ver estão boicotando a medicina moderna. Até nos hospitais eles só vão em último caso, desprezando todo o avanço científico que as instituições oferecem. Também deixam de comprar os medicamentos receitados, desdenhando da competência da indústria farmacêutica multinacional.


E com a higiene e a aparência, mesmíssimo desleixo. É visível e famosa a sujeira do pobre. Claro, só raramente adquirem produtos de toucador, e apenas de baixa qualidade, e são bem pouco chegados um bom banho de banheira espumante. E moda é considerado supérfluo por todos eles, vidrados que são em roupas antigas e gastas.


Juntando o descaso do lado de dentro e do lado de fora do corpo, o que se vê são pobres feios, de pele pálida, enrugada, ossudos e com ar melancólico. Com companhia assim não é possível a harmonia social.


Pobre é contra esportes mais nobres. Não joga tênis, vira a cara pra equitação, debocha de golfe e jamais participa de torneios de bridge ou xadrez. Mas se engata numa peladinha de rua. Tsk, tsk, tsk.


Em matéria de ensino, pobre é contraditório. Apesar de serem os mais ignorantes do país, não freqüentam as boas escolas brasileiras e dificilmente se matriculam nas universidades nacionais. Nascem e morrem com a burrice do berço. Quando item estudar, evitam as escolas particulares e dão preferência à rede de grupos escolares; porém, por um motivo não intelectual: estão a fim é da merenda escolar e não do pão do espírito.


Se dependesse do pobre, a nossa cultura iria pra cucuia. As galerias de artes, os cinemas, as livrarias e os teatros estão inteiramente abandonados pelos pobres. Uma clara manifestação de elitismo. O negócio de pobre é carnaval.


E tem as profissões. Alguém já viu pobre cirurgião-plástico, banqueiro ou geólogo? Me apontem. Pobre quer mesmo é ser pedreiro, trabalhar como operário, dar duro no comércio ou viver de biscates. Há um número crescente que nem empregado está!


Em todas as suas iniciativas, pobre põe o pior de si na empreitada. Vejam os mendigos. Vão para as ruas maltrapilhos, expõem partes do corpo com defeito, usam apenas expressões lamuriosas e ainda querem atrair a caridade alheia. Ora, ora.


Pra piorar a situação dele mesmo, pobre tem um mau hábito hereditário: só faz filho pobre. Nunca se ouviu falar de pobre gerando filho, não digo rico, mas, pelo menos, remediado. Nunca. Pobre se reproduz miseravelmente.


Além disso tudo, pobre causa sérios transtornos ao Governo: dá mais trabalho à polícia, atrasa o progresso, prejudica a imagem istrativa das autoridades e provoca a luta de classes. Assim não dá.


Pobre me impressiona por toda essa sua tendência à pobreza, um vínculo indissolúvel com as dificuldades, uma espécie de afeição definitiva à miséria. Pode ar a vida inteira na penúria que não muda seu status. São pessoas indiferentes à ascensão social, capazes de qualquer sacrifício para manter a posição de origem.


Tal esforço eu não entendo. Que estranha vocação será essa? Onde estão o seu sentido de sobrevivência e instinto de conservação? Pobre está degenerando. Um péssimo exemplo para a sociedade, um perigo para a raça humana.


É por isso que pobre não vai pra frente.



(Este texto foi originalmente publicado em 83, a partir de uma ótima provocação do Moacyr Scliar. E a republicação tem tudo a ver com as chances que o Brasil tem de redefinir a sua história.)

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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