Perdemos a piada
Foi-se o tempo em que havia dois lados: o bem e o mal. Saudades de poder estar fora da ciranda para poder criticar. Agora …
Foi-se o tempo em que havia dois lados: o bem e o mal. Saudades de poder estar fora da ciranda para poder criticar. Agora estamos dentro da panacéia. Si Crano enviou um bilhete: "Apesar de você" era hino na ditadura; use-o, não desista. O problema é que hoje o refrão é "apesar da gente". Estamos envolvidos até o pescoço. Podemos ser os bandidos e os mocinhos ao mesmo tempo. E é por isso que o filme ganhador do Oscar, Crash, surpreendeu. Porque nos inclui, santos enquanto demônios, na mesma responsabilidade. O roteiro costura-nos lado a lado em um mosaico único. Podemos ser racistas, xenófobos, carentes, loucos, além, é claro, de irresponsáveis, medrosos, desonestos e desesperançados. A convivência é um exercício de intenções que nem sempre combina com o que fazemos. A hipocrisia comanda o espetáculo nessa sociedade esquizofrênica. E dentro dessa loucura, da qual não podemos fugir, está o humor. Ao assistir Crash, conseguimos relaxar e? rir. Ao mesmo tempo em que estamos presos à severidade da situação, podemos relaxar, aliviar as tensões e considerar melhor o espaço que ocupamos. As situações jocosas oportunizadas pelo filme são escotilhas que nos poupam do cansaço de encarar a vida. Porém, se Crash nos leva a pensar suavemente, a realidade inacreditável da infância e da adolescência nas favelas brasileiras apresentadas no documentário Falcão nos leva à apatia, à impotência, à náusea, porque está aqui, do ladinho, na esquina. Se, no filme americano, as pessoas ainda têm emprego, atendimento médico, estudos, na nossa vizinha vida cotidiana não há nada. É terra arrasada. Um garoto diz que sonhava em ser palhaço. É o humor tentando uma brecha na superfície amalgamada, tal como uma folhinha verde no asfalto, ou no lixo. É um paradoxo igual a uma flor em um fuzil. Ao fazer palhaçada, ele poderia sofrer humilhações sem ser rejeitado, poderia expressar sem culpa a sua falta de jeito. Mas os palhaços, na verdade, e no sentido pejorativo, somos todos nós. Nesse ambiente, bem próximo, onde brincadeira de criança é o crime, nessa realidade que insistimos em não conhecer, nem o humor salva. E a pergunta é: do que vamos rir dessa vez?