Para rir e relaxar
De chofre: defina ficção. Rápido. Sem pensar. O que é ficção? O pessoal de uma cidadezinha pequena, no interior da serra gaúcha, hoje ou …
De chofre: defina ficção. Rápido. Sem pensar. O que é ficção? O pessoal de uma cidadezinha pequena, no interior da serra gaúcha, hoje ou em uma época qualquer em que tenha carro, computador, controle remoto, saberia o que é isso? Você aí, que tem televisão a cabo, e que joga paciência com cartas virtuais, saberia o que é ficção? Ou o que é roteiro, edição de imagens?
Fu Lana não poderia ficar sem implicar com pelo menos uma questiúncula de menor importância quando foi assistir Saneamento Básico, o Filme (cuja estréia nacional será no dia 20 de julho). A energia cri-cri que assola o povo gaúcho faz de Fu Lana uma ressentida. Ela não pode apenas sentar, abrir sua mente e deixar rolar. Precisa encontrar um furo, ficar procurando o erro, cadê o sotaque. Por que a Fernanda Torres não tem trejeitos italianos? Ela é tão sofisticada, mesmo na pele da Marina. Por que não aderiu ao triliche? As respostas estão no site: iria mesmo ficar muito ridículo. A decisão por trabalhar com artistas consagrados (todos) deve ter sido uma decisão difícil que antecedeu até mesmo o desenvolver do roteiro. No entanto, os gaúchos são deveras bairristas e sempre é bom ouvir aquele nosso cantar típico das frases bruscas, é claro, sem afetação. O que nos tranqüiliza, no Saneamento, é a presença, o sotaque natural e a representação delicadíssima de Paulo José. O filme torna-se uma homenagem ao ator. Suas pausas dão a profundidade e a sensibilidade que nos confortam e aquietam. A beleza da região combina com Paulo José, que não tem medo da cena muda. Para ele, não é preciso falar feito caturritas, o tempo todo.
É só uma ex-prefeita de São Paulo mandar a gente relaxar e gozar, em público, e todos se horrorizam. Hipocrisia à parte, no caso do filme de Jorge Furtado, a atitude certa é exatamente essa. Deixe e aquilo que incomoda será patrolado por um texto natural, inteligente e divertidíssimo. Ainda bem, somos vencidos, todos nós, os chatos, pela precisão das palavras.
O trabalho em cena tem origem na improvisação, que é a essência da nova paixão do diretor: a comédia dell"arte. Daquele jeito popular de fazer teatro, ele trouxe também o número de personagens e o estilo de cada um. O arlequim, a líder vilandeira, o casal de "bonitos", meio bobos e meio burros, e os senhores italianos de origens diferentes: um nobre, porém decadente, e o outro, um burguês em ascensão.
O argumento, a estas alturas, é um pretexto conceitual e, claro, político. Tapar uma fossa, acabar com o mau cheiro é o objetivo da cidade. No entanto, o caos da burocracia determina que há somente verba para um "vídeo cultural". Isso é bom ou ruim? O que é mais importante, o saneamento básico ou o cinema? Para o diretor, trata-se de dois extremos da civilização.
De um início despretensioso, a pequena turma de personagens da Linha Cristal se entusiasma e o filme, dentro do filme, toma outras proporções. Isso permite com que a gente aprenda um pouco sobre como fazer cinema, ou, pelo menos, como não fazer.
Portanto, aquele exagero de ignorância inicial a para o último plano, quando o que acontece é uma grande explosão de gargalhadas. Porque somos muito ridículos fazendo algo sem conhecimento técnico. Porque somos toscos dizendo palavras que não dominamos, e, se as dissermos com pompa e circunstância, fica tudo ainda mais ridículo. A ingenuidade e o desconhecimento tornam os personagens os nossos queridos.
É como se todos os brasileiros, além de técnicos de futebol, fossem também diretores de cinema. Então, durante o filme, ficamos pensando como faríamos se fôssemos eles. Como resolveríamos os figurinos, o que diriam nossos personagens, qual seria o final, afinal.
Fazer cinema é muito difícil. É dominar um monstro, uma quimera: um monstro mitológico, com corpo de cabra que lança fogo. No entanto, como diz a última música do filme (e que trilha), nós, os figurantes, estamos aqui no cantinho fazendo cinema, mas ficamos muito felizes que todos tenham gostado.