Para meus pais e Fernando Sauer

Quando eu era criança, se falava em Dia do Trabalho. Era um feriado aguardado, na casa de um operário de fábrica de calçados que, …

Quando eu era criança, se falava em Dia do Trabalho. Era um feriado aguardado, na casa de um operário de fábrica de calçados que, um dia, resolveu botar sua própria sapataria. Ainda esta semana, em mostrava à minha filha, quase formada em Arquitetura, a divisão interna do apartamento em que meus pais moram há 55 anos, na vila do IAPI, e que teve modificado seu interior, faz muitos anos, para ampliar as pequenas peças e dar lugar a uma cozinha maior, com espaço especialmente para o refrigerador que, no começo, ficava na sala.


Este eletrodoméstico, então imenso e barulhento, se chamava frigider  mesmo não sendo da marca Frigidaire, e antes herdara o nome de geladeira (minha mãe até pouco tempo usava este nome), porque seu antecessor era apenas um depósito fechado de barras de gelo que um carroceiro trazia, semanalmente, e entregava, depois de fisgar - com um gancho de ferro -  cada barra que vinha pingando água, mesmo enrolada numa estopa que protegia seus ombros do frio.


Mas eu falava das peças que não existem mais na casa dos meus velhos e que tem por testemunha, além das lembranças de quem ali morou e mora, as vigas no teto. Numa destas pecinhas de nada, existia a despensa para colocar mantimentos e, após, a tal geladeira horizontal. Pois ali, naquele cubículo, por muito tempo minha mãe, que deixara o emprego na fábrica de calçados para cuidar de mim em casa, como devia fazer toda boa mãe, trançava e trançava tiras de couro em volta de moldes de madeira, chamadas formas, compondo o corpo de futuros calçados de trecê, ou tricê como a gente dizia.


Lembro dela com o bico da forma fincado no estômago, pregos delimitando o desenho a seguir, e as mãos maltratadas pelo manuseio do couro, o cheiro mesmo deste material, com toda a química que trazia, enchendo a casa. Um dia, minha mãe não ou mais a dor no estômago e desistiu do trabalho que acrescentava uns trocos a mais na renda doméstica. Meu pai, ainda por anos, todos os dias, cinco e meia da manhã ainda escura, pegava a marmita que acomodava no bagageiro da velha bicicleta comprada de terceira mão, abria a porta, saía para o leito da rua, se abaixava, colocava, em cada canela, uma espécie de meio anel de aço que segurava as pernas das calças para evitar que o pano enrolasse no pedal ou na correia, e seguia, rua abaixo, assobiando uma música sem ritmo. De tardezinha, voltava, cansado, empurrando a biclicleta rua acima.


Trabalhador. A vida toda. Meu pai de 80 anos foi isso: trabalhador. Esta semana, me contou minha mãe, ele entrou na garagem onde, depois de todos seus AVCs instalamos todas as ferramentas da sapataria que nos sustentou por quase meio século, ligou a lixadeira, ficou olhando para ela, desligou, suspirou e perguntou: "será que eu nunca mais vou trabalhar?"  


Aí, me dá uma revolta quando fico sabendo que um jovem de 20 anos, irmão de um colega de minha filha na faculdade, morreu esta madrugada porque não quis entregar o carro para um desgraçado qualquer que jamais vai merecer um feriado, homenagem ou ser honrado com o nome de trabalhador. Fernando Sauer se foi. Deixou o futuro na Faculdade de Engenharia, deixou a família, foi desembarcado da vida. O infeliz que o matou está por aí, espreitando outros trabalhadores como Fernando, que morava com o irmão num pequeno apartamento e trabalhava para sustentar seus estudos.


Num país governado por alguém que se fez em nome do trabalhador e terá ficado oito anos no trono dos podres poderes de Brasília e numa capital que ficou quase 20 anos nas mãos deste mesmo partido, é repugnante saber que o nome de quem trabalha foi usado (é e será) politiqueiramente. E que se continue perdendo gente decente por causa de bastardos que preferem o caminho das drogas, do roubo e do assassinato enquanto este mesmo partido e seu líder se preocupam em indenizar gente que faz charme dizendo ter defendido o Brasil da ditadura.


Por isso, tanto faz mudar o nome de Dia do Trabalho para Dia do Trabalhador. Para mim, hoje, este é o dia das vítimas do mal e dos poderosos que dele se beneficiam, lamentavelmente. 

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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